Um dos mais importantes princípios contemporâneos é o da igualdade, citado diversas vezes ao longo do texto constitucional. Desde seu preâmbulo, a Constituição menciona que a igualdade deverá ser devidamente assegurada, além de ser um termo utilizado no caput do art. 5º e em diversas outras passagens da Carta Magna (“igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” [1] e “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos” [2], por exemplo).
Partindo deste princípio, há o surgimento de dois conceitos distintos: igualdade formal (também conhecida como igualdade de direito) e igualdade material (também conhecida como igualdade de fato). Enquanto o primeiro termo se refere a um conceito mais abstrato, o segundo se refere à efetivação da igualdade de maneira palpável e concreta. Assim, a busca por essa igualdade material se mostra um verdadeiro desafio na sociedade atual.
A referida igualdade material equivale ao conceito de equidade, e pode ser sintetizada a partir da famosa frase de autoria de Aristóteles: “devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”.
O inciso I do art. 5º da Constituição prevê que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. É bastante evidente, contudo, que essa igualdade não se materializa na realidade fática; ao contrário disso, a desigualdade de gênero é uma das principais pautas de debate nos espaços políticos no Brasil.
Ainda que em muitos aspectos os índices de desigualdade de gênero tenham sido reduzidos nos últimos anos, ainda há diversos dados preocupantes nesse sentido. A título de corroboração, observemos o gráfico abaixo, que se refere às taxas de participação da População Economicamente Ativa (PEA), por sexo, no Brasil, entre os anos de 1950-2009:

Mas o que há de mais preocupante vai além da análise do gráfico acima reproduzido: ainda que as mulheres estejam cada vez mais assumindo um protagonismo ativo na economia, a sobrecarga no ambiente doméstico persiste. No ano de 2022, o IBGE divulgou que mulheres dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas. E essa desigualdade permanece mesmo entre as mulheres que exercem alguma atividade profissional fora de casa: elas dedicaram 6,8 horas a mais do que os homens aos afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas em 2022.

E não é só: a diferença de remuneração entre homens e mulheres, que vinha em tendência de queda até o ano 2020, voltou a subir no país e atingiu o índice de 22% no fim de 2022, segundo a pesquisa realizada pelo IBGE. Essa diferença, apesar de ser vedada tanto pela Constituição quanto pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), constitui uma realidade a ser reparada. Até porque há um recorte que merece atenção: das mulheres que resolvem ser mães.
De acordo com o Relatório Global de Disparidade de Gênero do Fórum Econômico Mundial de 2023, a igualdade plena entre gêneros só ocorrerá daqui 131 anos, em 2154, sendo que o Brasil aparece em 57º lugar no ranking e no ano anterior ocupava a 94ª posição.
Desse modo, numa busca contínua pela igualdade formal, surge no âmbito da advocacia as prerrogativas às advogadas gestantes, lactantes, adotantes ou que derem à luz (sem excluir os advogados que se tornarem pais).
A Lei nº 13.363/2016 e outros desdobramentos
No ano de 2013, a hoje ministra do Superior Tribunal de Justiça, Daniela Teixeira, atuava como advogada e estava pronta para fazer sustentação oral no Conselho Nacional de Justiça, atividade corriqueira da rotina de muitos advogados. Na ocasião, contudo, ela estava grávida de 29 semanas e por isso pediu preferência na sustentação, mas teve seu pedido negado pelo presidente do CNJ à época sob a justificativa de que a pauta da sessão era pública e se sobrepunha a interesses individuais, pois não havia previsão legal para preferência.
Dessa maneira, a então patrona aguardou a manhã inteira e metade da tarde até que chegasse seu momento de ter seu processo apregoado, mesmo diante das condições físicas que seu estado lhe conferia. E, assim, após ter realizado sua sustentação oral, e possivelmente sob a influência do estresse prolongado ao qual foi submetida ao longo do dia, imediatamente após a sessão, a gestante teve que ser internada após o início prematuro do seu trabalho de parto. Sua filha, Julia Matos, nasceu prematura com pouco mais de um quilo. Além de ter tido seis paradas cardíacas no mesmo dia, a bebê ficou internada durante sessenta e um dias na Unidade de Terapia Intensiva.
Em 2015, após esse triste episódio que extrapolou os desafios da sua carreira profissional e impactou profundamente na saúde dela e de sua filha, Daniela Teixeira, então diretora da OAB/DF, reuniu mais de quatrocentas advogadas para elaborar o Projeto de Lei nº 2.881/15, apensado ao Projeto de Lei nº 62/16, para estipular direitos e garantias para as advogadas gestantes, lactantes, adotantes, que derem à luz, e contemplando, ainda, os advogados que se tornarem pai.
O PL foi aprovado e assim foi publicada a Lei nº 13.363, de 2016, popularmente conhecida como “Lei Julia Matos”, nome dado em homenagem à filha da Ministra Daniela Teixeira, que sobreviveu às adversidades de um parto prematuro que poderia ter lhe custado a vida. E a importância dessa lei fica ainda mais evidente pelo fato de que este evento mencionado não se trata de um caso isolado; há diversas outras situações reportadas por advogadas em que elas se sentiram prejudicadas durante sua atuação profissional em razão de sua maternidade, até mesmo após a “Lei Julia Matos” entrar em vigência.
Uma advogada grávida foi coagida na frente de sua cliente ao se negar a passar pelo raio-x do Fórum de Angra dos Reis, ainda que a Lei nº 13.363, de 2016 preveja essa prerrogativa em razão de possíveis complicações que a exposição possa ocasionar à gestação. A patrona disse que, ao adentrar no Fórum e se recusar a passar pelo raio-x em razão de sua prerrogativa, ouviu comentários de que “ela nem tinha barriga de grávida”, além de que ela teve que ser escoltada por um policial militar no período em que lá permaneceu.
A redação da Lei nº 13.363, de 2016, contudo, é bastante clara e não permite uma interpretação divergente. Ao alterar a Lei nº 8.906, de 1994 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil), houve o acréscimo do art. 7º-A, que dispõe que é direito da advogada gestante a “entrada em tribunais sem ser submetida a detectores de metais e aparelhos de raios X”. É evidente que o cumprimento do dispositivo mediante constrangimento acaba por configurar, na prática, em um notório desrespeito às prerrogativas da advogada gestante.
Da mesma maneira, exigir que uma das partes do processo contrate um advogado ou advogada que não seja gestante para atuar em suas demandas acaba por prejudicar a profissional que opta em ser mãe, que é uma escolha legítima e que deve ser respeitada e compatibilizada com o exercício da profissão. Apesar disso, após o requerimento da patrona em uma reclamação trabalhista para o adiamento de audiência pelo fato de que estava nos últimos dias da gestação com a devida juntada de atestado médico, seu pedido foi negado pelo juízo com a menção de que ele “beira a litigância de má fé, no sentido de trazer uma oposição ao andamento do processo criada pela própria parte ao buscar profissional que não poderia estar presente à audiência”.
Assim, a advogada impetrou mandado de segurança com pedido de liminar e uma desembargadora do TRT da 7ª Região autorizou o adiamento na audiência. Um dos pontos que serviu de fundamentou à decisão foi, justamente, a Lei nº 13.363, de 2016, que prevê que é direito da advogada que der à luz “suspensão de prazos processuais quando for a única patrona da causa, desde que haja notificação por escrito ao cliente”. Ademais, a desembargadora destacou que a escolha do advogado deve ser feita de forma livre pela parte, e qualquer presunção de má-fé na escolha de uma procuradora gestante implica, indiretamente, a diminuição das possibilidades de trabalho desta última.
E os descumprimentos às prerrogativas não se restringem à advogada gestante, como também ocorrem com a advogada mãe e lactante. Recentemente, uma patrona que faria uma sustentação oral em sessão virtual do TJ/AM pediu preferência porque amamenta sua filha de apenas 6 meses, mas teve seu pedido negado e ainda foi repreendida por desembargador que disse que os barulhos feitos por sua bebê estavam atrapalhando a sessão e colocando em xeque sua ética. Nessa situação, houve afronta à determinação expressa da Lei nº 13.363, de 2016, que reconhece como direito da advogada lactante a “preferência na ordem das sustentações orais”.
Os advogados, todos do sexo masculino, em contrapartida, não parecem enfrentar as mesmas dificuldades no exercício de sua paternidade. Em 2022, a 2ª Turma do STJ, por iniciativa do Ministro Mauro Campbell Marque, deu preferência na ordem de julgamento a um advogado que levou seu filho de 1 ano e 10 meses a uma sessão. Os ministros invocaram o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição Federal para justificar a preferência: uma atitude bastante humanizada, mas que também deveria acontecer quando as advogadas que são mães, gestantes e/ou lactantes estivessem em situação similar.
Nesse sentido, destaca-se que, apesar de a Lei nº 13.363, de2016, incluir o advogado que se tornar pai dentre os contemplados para estipular dos seus direitos e garantias, há apenas um dispositivo que o cita expressamente. A previsão é de que o processo deverá ser suspenso “quando o advogado responsável pelo processo constituir o único patrono da causa e tornar-se pai”. Ainda assim, quando há sensibilidade entre os julgadores, é possível invocar outros dispositivos da legislação ou até mesmo princípios fundamentais para justificar a concessão de preferência na ordem de julgamentos, como ocorreu na sessão da 2ª Turma do STJ.
Outro fato relevante que merece destaque a respeito da “Lei Julia Matos” é o fato de que atualmente a maioria da advocacia brasileira é composta por mulheres. Apesar disso, a representatividade das mulheres ainda aparece de maneira discreta: na última eleição à presidência da OAB, ocorrida em 2021, foram eleitas apenas cinco mulheres à presidentes de seccionais, sendo elas: Marilena Winter (PR), Cláudia Prudêncio (SC), Patrícia Vanzolini (SP), Gisela Cardoso (MT) e Daniela Borges (BA). E ainda assim, isso foi considerado um marco histórico.
Por mais que tenham ocorrido eventos que acabaram por desrespeitar a Lei nº 13.363, de2016, conforme os relatados acima, houve outros momentos em que o respeito aos seus dispositivos prevaleceu. A sede do TJ/PR, em Curitiba, passou a demarcar vaga exclusiva às advogadas gestantes, lactantes, adotantes ou que deram à luz, por exemplo. No mesmo sentido, O TJ/RJ adequou o estacionamento do Fórum Central e estabeleceu que as advogadas grávidas tenham acesso gratuito ao pátio, pois a “Lei Julia Matos” prevê que é um direito da advogada gestante a “reserva de vaga em garagens dos fóruns dos tribunais”.
Essas mudanças na rotina das advogadas podem não estar ocorrendo com a celeridade desejada, mas, ao se refletir a respeito do contexto histórico e evolução na legislação sobre o direito das mulheres no Brasil, é possível verificar que o aperfeiçoamento das normas, apesar de lento, tem sido constante. Destaca-se, nesse sentido, algumas inovações que foram muito aguardadas e ocorreram nas duas últimas décadas, entre os anos de 2002 e 2017.
No ano de 2002, com a entrada em vigor do Código Civil, deixou de ser possível a possibilidade da anulação do casamento em casos nos quais o homem descobrisse, em até dez dias, que a esposa não havia se casado virgem. Apesar de anteriormente, no ano de 1980, a senadora Eunice Michiles ter apresentado o PL 237/80 com o intuito de revogar os artigos 178 e 219 do Código Civil de 1916, a proposição foi arquivada alguns anos depois.

Além disso, apesar de a licença maternidade estar prevista na CLT há alguns anos, o benefício só foi estendido no ano de 2017 às estudantes que recebem bolsa-pesquisa. Já as mulheres que prestam serviço às Forças Armadas obtiveram o direito à licença-gestante e à adotante apenas no ano de 2015, com o advento da Lei nº 13.109, de 2015, que também dispõe sobre as medidas de proteção à maternidade para militares grávidas e a licença-paternidade, no âmbito das Forças Armadas.
E assim, as mulheres (especialmente aquelas que optam em conciliar a atividade profissional com a maternidade) seguem lutando incansavelmente na busca pela efetivação dos seus direitos. Nesse sentido, é pertinente destacar que os avanços, apesar de vagarosos, são contínuos.
Conclusão
Em um Estado Democrático de Direito como o Brasil, a pluralidade de indivíduos e a consequente diversidade de suas escolhas profissionais e pessoais são muito enriquecedoras; assim, a redução da desigualdade e do preconceito de gênero deve ser postulada pela sociedade civil em todos os seus níveis, em atendimento aos próprios preceitos constitucionais em que se busca a igualdade material, também denominada de “igualdade aristotélica” ou de “equidade”.
Conforme demonstram os dados anteriormente apontados, as mulheres se encontram em desvantagem tanto no ambiente pessoal quanto no profissional: em média, elas são minoria da População Economicamente Ativa, dedicam-se por mais tempo às atividades de cuidados de pessoas ou afazeres domésticos e recebem uma remuneração consideravelmente menor.
Nesse contexto social desfavorável, a criação de leis que visam ao menos amenizar a desigualdade de gênero são essenciais para que as mulheres consigam atingir seus objetivos pessoais e profissionais da maneira mais equilibrada possível, o que demonstra a relevância da Lei nº 13.363, de 2016, a “Lei Julia Matos”, para estipular direitos e garantias para a advogada gestante, lactante, adotante ou que der à luz e para o advogado que se tornar pai.
Assim, espera-se que seja dado o devido cumprimento à lei, para que os episódios negativos ocorridos com as advogadas que são gestantes ou mães (como o desrespeito à preferência na ordem de julgamento, negativa de adiamento de audiência ou coação para se submeter ao aparelho de raio-x nas portas dos fóruns) se tornem cada vez mais raros, ou quem sabe um dia, inexistentes.
E a observância às prerrogativas da advogada gestante, lactante, adotante ou que der à luz não se trata de um favor ou gentileza, e sim de um direito que precisa ser efetivado.
Referências
ADVOGADA grávida é coagida ao se negar a passar pelo raio-x de fórum: OAB/RJ reagiu ao caso e pediu esclarecimentos ao diretor do Fórum de Angra dos Reis. OAB/RJ reagiu ao caso e pediu esclarecimentos ao diretor do Fórum de Angra dos Reis. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/341244/advogada-gravida-e-coagida-ao-se-negar-a-passar-pelo-raio-x-de-forum. Acesso em: 15 dez. 2023.
ADVOGADO vai a sessão com bebê e ministros do STJ antecipam processo: O pequeno foi elogiado pelo presidente da turma: “se comportou brilhantemente”. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/371973/advogado-vai-a-sessao-com-bebe-e-ministros-do-stj-antecipam-processo. Acesso em: 15 dez. 2023.
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ASSOCIAÇÃO aponta afronta à lei em episódio com lactante no TJ/AM: Abracrim Mulher SP apontou “falta de humanidade” no episódio em que mãe foi repreendida em sessão virtual por barulhos feitos por sua bebê. Ela teria pedido prioridade em sustentação, mas teve o pedido negado. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/372320/associacao-aponta-afronta-a-lei-em-episodio-com-lactante-no-tj-am. Acesso em: 15 dez. 2023.
DYNIEWICZ, Luciana. Diferença salarial entre homens e mulheres vai a 22%, diz IBGE: brasileira recebe, em média, 78% do salário masculino. Brasileira recebe, em média, 78% do salário masculino. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/diferenca-salarial-entre-homens-e-mulheres-vai-a-22-diz-ibge/. Acesso em: 15 dez. 2023.
GONÇALVES, Jennifer; PETTERINI, Francis Carlo. O impacto da maternidade na desigualdade salarial no mercado de trabalho formal: uma análise para o Brasil entre 2008 e 2018. Textos de Economia. Florianópolis, v. 26, n. 1, p. 01-29, 2023.
LEI Julia Matos: Sede do TJ/PR demarca vaga exclusiva para advogadas grávidas: Iniciativa levou em conta pedido da Comissão da Mulher Advogada da OAB/PR. Iniciativa levou em conta pedido da Comissão da Mulher Advogada da OAB/PR. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/306349/lei-julia-matos–sede-do-tj-pr-demarca-vaga-exclusiva-para-advogadas-gravidas. Acesso em: 15 dez. 2023.
MULHERES trabalham, em média, 21 horas por semana em afazeres domésticos, aponta pesquisa: Segundo a ONG Think Olg, em um ano, o número equivale a mais de mil horas dedicadas ao trabalho doméstico. Disponível em: https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/11/14/mulheres-trabalham-em-media-21-horas-por-semana-em-afazeres-domesticos-aponta-pesquisa.ghtml. Acesso em: 15 dez. 2023.
PASSADO e presente: conheça as leis sobre direito das mulheres no Brasil: Da “lei da virgindade” à criação de direitos trabalhistas, país tem evoluído em relação aos direitos femininos. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/275461/passado-e-presente–conheca-as-leis-sobre-direito-das-mulheres-no-brasil. Acesso em: 15 dez. 2023.
TAWADA, Giovanna. Inclusão das mulheres na advocacia do país: de acordo com os dados obtidos na oab, atualmente há 1.310.512 advogados em todo o país, sendo que desses advogados a maioria são mulheres, contando com 667.606 advogadas e 642.906 advogados. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/378346/inclusao-das-mulheres-na-advocacia-do-pais. Acesso em: 15 dez. 2023.
[1] Artigo 206, inciso I, da Constituição Federal.
[2] Artigo 14, caput, da Constituição Federal.