Entre os traços mais marcantes do Código de Processo Civil atualmente vigente está a busca pelo prestígio aos precedentes.
Mais do que a criação de um sistema de normas que busca prestigiar a coerência jurídica nas decisões prolatadas, o atual diploma processual pretendeu estabelecer verdadeira obrigatoriedade quanto à observância de decisões revestidas de naturezas específicas.
Nesse sentido, o art. 927 do Código de Processo Civil prevê que os juízes e os tribunais devem observar: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
O modo imperativo adotado no texto dispositivo não é por acaso, já que o propósito de sua inserção era efetivamente estabelecer a obrigatoriedade de o julgador observar entendimentos firmados pelos tribunais superiores em julgamentos submetidos à sistemática da repercussão geral e dos recursos repetitivos.
O dever quanto à observância dos denominados precedentes de observância obrigatória vem reforçado pelo inciso VI do § 1º do art. 489 do Código de Processo Civil, que prevê que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que deixe “de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”.
Diante das dificuldades verificadas na prática, ou melhor, no cotidiano forense, quanto à efetiva implantação de uma “cultura de precedentes”, o supracitado art. 927 do Código de Processo Civil acaba por fornecer hipóteses específicas de precedentes revestidos de características particulares que tornam a observância destes obrigatória.
Nesse contexto, e diante da referida disposição legal, tornou-se mais fácil reconhecer que, diante do caráter vinculante de tais decisões constantes do rol taxativo do artigo, tais precedentes tem clara natureza normativa, a configurar fonte do Direito, que não se limita ao texto de lei.
Por isso é que se considera que os precedentes cuja observância, nos termos da lei, é exigida dos juízes e tribunais, representam norma jurídica.
A constatação é relevante porque o Código de Processo Civil atualmente vigente trouxe uma alteração quanto às hipóteses de cabimento da ação rescisória. A alteração verificada no texto atual em relação ao teor do dispositivo anterior parece, em uma análise inicial, singela, mas não é.
Nesse sentido, o inciso V do art. 485 do Código de Processo Civil de 1973 previa como hipótese de rescindibilidade da sentença de mérito transitada em julgado no caso de a sentença ter sido proferida em “violação a literal disposição de lei”.
No Código de Processo Civil atual e em vigor desde março de 2016, o inciso V do art. 966 estabeleceu o cabimento de ação rescisória quando a decisão de mérito transitada em julgado “violar manifestamente norma jurídica”.
Com isso, a possibilidade de ajuizamento de ação rescisória não se restringe mais às hipóteses de violações de literal disposição legal, tendo sido ampliado, sobremaneira, o alcance do inciso, que passou a abarcar a rescindibilidade das decisões que violarem os precedentes de observância obrigatória elencados no art. 927 do CPC.
Apesar da alteração do texto do dispositivo, a possibilidade de ajuizamento de ação rescisória por violação a enunciado de súmula, por exemplo, já era defendida por parcela da doutrina ainda à luz do CPC de 1973. Embora não se trate propriamente, portanto, de uma novidade, fato é que tal circunstância de rescindibilidade da decisão de mérito transitada em julgado segue gerando intensos debates.
Dentre as questões discutidas com a alteração do inciso está a aplicação da Súmula 343 do Supremo Tribunal Federal. O entendimento sedimentado no referido enunciado detém o seguinte teor:
“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.”
O posicionamento do Supremo Tribunal Federal representado pela Súmula 343 foi estabelecido sob a égide do Código de Processo Civil de 1939, tendo o enunciado sido aprovado na sessão plenária de 13.12.1963, mas sua aplicação persiste e permeia a jurisprudência atual, com alguma oscilação quanto a sua interpretação.
Com o mesmo posicionamento representado pelo enunciado em referência, mas já à luz do CPC de 73, o STF fixou o seguinte entendimento no Tema 136, julgado sob o rito dos recursos repetitivos:
Tema 136 – Recurso Extraordinário 590809
a) Cabimento de ação rescisória que visa desconstituir julgado com base em nova orientação da Corte; b) Creditamento de IPI pela aquisição de insumos isentos, não tributados ou sujeitos à alíquota zero.
Descrição:
Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 153, § 3º, II, da Constituição Federal, e dos princípios da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais, a possibilidade, ou não, de rescisão de julgado, fundamentado em corrente jurisprudencial majoritária existente à época da formalização do acórdão rescindendo, em razão de entendimento divergente posteriormente firmado pelo Supremo, e, por conseguinte, o direito, ou não, ao creditamento a título de IPI em decorrência de aquisição de insumos isentos, não tributados ou sujeitos à alíquota zero.
Tese:
Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente.
A tese firmada no tema no sentido de que não cabe ação rescisória “quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente” prestigia o texto da Súmula 343/STF e parece coerente com o fato de que o CPC/73 exigia, para a hipótese de rescindibilidade, que a violação ao dispositivo de lei fosse literal.
Após a entrada em vigor do atual Código de Processo Civil, a Súmula 343 e o Tema 136, ambos do STF, seguem sendo aplicados com ponderações sobre as respectivas interpretações, ante a alteração do texto legal, como no caso do Tema 581 da Repercussão Geral:
EMENTA Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. Tributário e processual civil. Ação rescisória. Súmula nº 343/STF. Inaplicabilidade. ISS. Operadora de plano de saúde. Prestação de serviço sujeita à incidência do tributo. Tema nº 581 da Repercussão Geral.
1. Tratando a decisão rescindenda originária das instâncias ordinárias de matéria constitucional, cabe, em regra, ação rescisória. De outro giro, não cabe a ação rescisória se presente a hipótese mencionada na tese do Tema nº 136, isso é, se a decisão rescindenda estiver em consonância com a orientação do Supremo Tribunal Federal vigente à época, ainda que o próprio Tribunal Constitucional a tenha, posteriormente, superado.
(…)
(STF – ARE: 1435843 SP, Relator: DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 22/08/2023, Segunda Turma, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO. DJe-s/n DIVULG 08-09-2023 PUBLIC 11-09-2023)
Como se nota, em que pese não haja distinção no texto atual sobre a questão cronológica, ou seja, se o entendimento vinculante e que representa a norma jurídica objeto de violação foi fixado antes ou depois da decisão rescindenda, a jurisprudência segue fazendo tal distinção.
De todo o modo, seja pelo contexto em que aprovado o enunciado da Súmula 343/STF seja pelo fato de que a sua utilização é usualmente dirigida a desviar-se do julgamento do mérito de ações rescisórias, parte da doutrina já defendia a superação do enunciado.
Com o atual Código de Processo Civil o coro pela superação do entendimento foi endossado com base no que preveem os art. 525, § 15 e art. 535, § 8º, já que os dispositivos tratam de hipóteses de cabimento da ação rescisória quando a decisão rescindenda for “lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso”.
Entendendo-a como superada ou não, fato é que a Súmula 343/STF ganha destacada relevância num contexto em que o texto de lei admite a ação rescisória por violação à norma jurídica, mas o enunciado veda que a questão objeto da norma tenha tido interpretação controvertida nos tribunais.
Ocorre que, muitas vezes, para que uma questão de direito seja objeto de uma tese fixada em um recurso repetitivo, por exemplo, alguma controvérsia há de ter havido, de modo que dificilmente o entendimento representado pela norma jurídica violada pela decisão rescindenda não encontrará nenhuma divergência jurisprudencial.
Nesse contexto, apesar de não serem tão comumente encontradas as decisões nesse sentido, já são verificados na jurisprudência casos de acolhimento da pretensão rescisória com fundamento na inobservância de precedentes de observância obrigatória, tais como os temas repetitivos1. Contudo, em tais casos, é usual constatar que as decisões de procedência de pedidos rescisórios com tal fundamento atravessam a análise quanto à existência do precedente ao tempo da prolação da decisão rescindenda.
- Cf. STJ – AgRg no REsp: 1491515 PR 2014/0284041-6, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 16/08/2016, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/09/2016; STJ – EDcl no AgInt no REsp: 1531387 PR 2015/0104589-2, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 24/05/2021, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/05/2021; STJ – AgInt no REsp: 1401492 SC 2013/0293113-0, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 28/11/2017, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/12/2017; STJ – AR: 5870 PR 2016/0218898-0, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 24/04/2024, S1 – PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 29/05/2024. ↩︎