Foi apresentado pelo Poder Executivo o Projeto de Lei nº 2.925, de 2.0231, inicialmente em regime de urgência, nos termos do que admite o art. 64 da CF, que propõe modificações a serem implementadas na Lei nº 6.385/76, que disciplina o mercado de valores mobiliários, e na Lei nº 6.404/76, que rege as sociedades anônimas.
O escopo deste PL é trazer maior proteção aos direitos dos investidores por meio de reforço da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e, consequentemente, melhorar o ambiente de negócios no País ao disciplinar de forma mais efetiva a responsabilização de controladores e administradores destas sociedades quando causem prejuízos decorrentes, por exemplo, de abuso de poder e violação de deveres institucionais.
O objeto levado à Câmara dos Deputados é amplo e apresenta-se em um contexto de busca por implementação de melhorias e aprimoramento do mercado de valores mobiliários e, nesse contexto, trata em grande medida do fortalecimento e ampliação das atividades da CVM.
Dentre as diversas alterações legislativas propostas, destacamos nessa breve análise o ponto específico que versa sobre a previsão de ampliação da defesa dos interesses dos investidores, de forma coletiva, pela via arbitral.
O art. 27-H que poderá ser introduzido na Lei nº 6.385/76, caso aprovado o PL, tem a seguinte redação:
Os investidores legitimados poderão propor, em nome próprio e no interesse de todos os titulares de valores mobiliários da mesma espécie e classe, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos decorrentes de infrações à legislação ou à regulamentação do mercado de valores mobiliários.
O texto proposto chama a atenção em razão da atribuição da legitimidade ativa diretamente aos investidores que detenham representação mínima em quantidade e valores estabelecidos no § 1º do art. 27-H, a seguir descritas:
§ 1º São legitimados para propositura da ação os investidores titulares de valores mobiliários que atendam a, no mínimo, um dos seguintes requisitos:
I – representar percentual igual ou superior a dois inteiros e cinco décimos por cento dos valores mobiliários da mesma espécie ou classe; ou
II – possuir valor igual ou superior a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), atualizados anualmente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA.
A redação acima demonstra uma preocupação no sentido de exigir requisitos mínimos para conferir essa legitimação extraordinária aos próprios titulares dos valores mobiliários, colocando um filtro ou uma espécie de qualificação para que os investidores detenham legitimidade ativa.
A proposta de criação destes elementos de preenchimento é positiva uma vez que, se nenhum requisito – além de ser titular de valor mobiliário – fosse exigido pela lei, poderia haver um desvirtuamento ou uso indevido da propositura desta demanda o que, por vezes, poderia até inviabilizar a continuidade da atividade empresarial.
Foram apresentados requisitos alternativos e não cumulativos, de modo que a legitimidade será obtida se houver a representação de mais de dois inteiros e cinco décimos por cento dos valores mobiliários ou que os valores mobiliários somados atinjam o patamar mínimo de R$ 50.000.000,00.
A exigência do preenchimento do requisito mínimo, contudo, pode ser ampliada, à luz do próprio PL, pois concedeu à CVM a possibilidade de agregar novas exigências, conforme previsão do § 4º: “A Comissão de Valores Mobiliários poderá modificar os critérios de legitimação dos investidores previstos no § 1º, mediante a fixação de escala em função do valor do capital social ou o uso de outros parâmetros que vierem a ser estabelecidos em regulamentação”.
É possível, contudo, mesmo com a previsão do § 4º acima referido, que durante a tramitação do PL surjam questionamentos e sugestões para modificação do critério apresentado, por exemplo, exigindo-se uma cumulação de requisitos ou, ainda, elevando em lei os percentuais, o que parece salutar que seja mais amplamente debatido a fim de que a atribuição da legitimidade extraordinária seja bem recepcionada.
Regras específicas ainda estão previstas nos parágrafos seguintes e definem, por exemplo, o momento da aferição da titularidade do valor mobiliário como sendo o momento “imediatamente anterior àquele em que os danos alegadamente se materializaram” e também que não haverá perda da legitimidade para o investidor que alienar posteriormente a sua participação.
Buscou-se também disciplinar o regime de sucumbência, estabelecendo no § 10º que em caso de improcedência os autores seriam condenados aos honorários a serem fixados “sobre o valor do prêmio pleiteado, na forma prevista no inciso III do § 11”, que, por sua vez, foi estabelecido em vinte por cento.
O projeto dispõe, ainda, que uma vez em tramitação, referida ação coletiva societária poderá admitir o ingresso de litisconsortes que, uma vez integrantes desta ação a ela ficarão vinculados, destacando, contudo, a ressalva para os investidores que não pretendem se vincular a essa demanda:
§ 8º A propositura da ação coletiva não impede os demais interessados de propor ação de indenização a título individual, desde que não tenham intervindo no processo como litisconsortes.
O Ministério da Fazenda divulgou nota acerca do PL destacando o fato de que a defesa dos interesses daqueles que venham a ser prejudicados por decisões societárias tem uma dimensão coletiva que pode ser classificada como de direito individual homogêneo em vista da origem comum da eventual lesão sofrida pelos investidores minoritários, por exemplo, fato que justificaria a publicidade e transparência das decisões e do processo arbitral em si quando matérias dessa natureza estiverem em discussão.
O PL segue disciplinando e trazendo mais detalhes acerca do cumprimento da sentença que seria proferida, destacando-se procedimento bastante similar com o já existente e previsto na Lei de Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor, do qual destacamos:
§ 13. Na hipótese de a condenação ser ilíquida, sua liquidação e execução serão promovidas individualmente pelos investidores prejudicados.
§ 14. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, a liquidação e a execução da sentença poderão ser promovidas pelos autores da ação, pelo Ministério Público ou pela Comissão de Valores Mobiliários, hipótese em que a indenização será revertida para o fundo de que trata o art. 13 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.” (NR)
Outras novidades são trazidas pelo PL no art. 27-I, que estabelece que a ação de responsabilidade pode ser decidida por arbitragem, desde que prevista previamente nos estatutos, regulamentos, escrituras e instrumentos de emissão de valores mobiliários e que estes “serão públicos”. Ainda, na alteração do art. 109 da Lei 6.404/76, que também contemplaria a possibilidade de que os estatutos das companhias estabeleçam a solução de questões envolvendo acionistas e administradores via arbitragem e, da mesma forma, com procedimentos públicos com limites estabelecidos pela CVM:
Art. 2º A Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 109. ……..
§ 3º O estatuto pode estabelecer que as divergências que envolvam a companhia, seus acionistas e administradores sejam solucionadas mediante arbitragem, nos termos em que especificar.
§ 4º Os procedimentos arbitrais relativos a companhias abertas serão públicos, nos limites estabelecidos na regulamentação a ser editada pela Comissão de Valores Mobiliários.
§ 5º As instituições arbitrais darão publicidade a seus precedentes relativos a demandas que envolvam companhias abertas e os divulgarão em seus sítios eletrônicos, organizados por questão jurídica decidida.
A arbitragem coletiva ainda é tema que suscita muitas discussões, tendo em vista a dificuldade em compatibilizar seus princípios próprios com as regras gerais do processo coletivo, como a publicidade e intervenção de órgãos de fiscalização e controle, assunção de patrocínio em caso de desistência e outros óbices. Apesar disso, tem crescido a sua utilização e, ao menos na esfera dos direitos patrimoniais empresariais, tem-se obtido algum avanço. O projeto de lei aqui tratado segue essa tentativa de compatibilizar esses dois regimes.
Em países como os Estados Unidos da América a utilização de arbitragem coletiva é frequente não apenas envolvendo investidores de mercado ou acionistas, e possui ampla aceitação, até em razão do histórico positivo das class actions. Não obstante, mais recentemente, esse tipo de procedimento também tem enfrentado algumas críticas envolvendo a forma de comunicação das partes impactadas.
Vale destacar que já surgiu uma preocupação das próprias câmaras arbitrais com relação à padronização e à regulamentação desse tipo de procedimento, como se pode identificar na CAM-CCBC2, que editou a Resolução 02/2023 sobre “as arbitragens relativas a interesses pluri-individuais uniformes na arbitragem societária arbitragem empresarial” prevendo regras próprias, como, por exemplo, regras de notificação de terceiros afetados (art. 4º) e outras práticas salutares que devem ser analisadas. Referida resolução estabeleceu no art. 1º que o regulamento deve ser aplicado sempre que estiverem cumulativamente presentes as seguintes condições:
a sentença arbitral seja capaz de afetar não apenas aqueles que integram o polo requerente de arbitragem ou que tenham sido incluídos no polo requerido no Requerimento de Arbitragem, mas também a esfera jurídica de sociedade anônima, sociedade limitada ou associação (“Pessoa Jurídica”) e, simultaneamente, de sócios, associados ou acionistas titulares de valores mobiliários da classe ou espécie diretamente sujeitos aos efeitos da decisão arbitral, e/ou aos administradores também a ela sujeitos (“Terceiros Afetados”);
a natureza da relação jurídica controvertida objeto da arbitragem exija decisão uniforme para todos os Terceiros Afetados; e
o estatuto ou o contrato social da Pessoa Jurídica inclua cláusula segundo a qual as partes convencionam que a arbitragem será administrada pelo CAM-CCBC e regida pelo Regulamento do CAM-CCBC, conforme artigo 1º do Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC.
Não obstante, o Comitê Brasileiro de Arbitragem3 emitiu nota técnica manifestando-se, nesse primeiro momento, de forma cautelosa e com muitas ressalvas à parte do PL 2.925/2023 que regulamentaria a arbitragem, trazendo ponderações que são pertinentes que sejam conhecidas a fim de enriquecer o debate prévio do assunto ainda durante a tramitação do projeto de lei.
Inicialmente há o reconhecimento da relevância da matéria da seguinte forma:
É indiscutível que o aperfeiçoamento dos mecanismos de tutela privada de direitos de acionistas e investidores, que consiste no objetivo central do PL, é de grande importância para o desenvolvimento do mercado de capitais e, consequentemente, da economia brasileiros. Portanto, é louvável a iniciativa do PL focada neste aspecto. No entanto, há aspectos do PL relacionados à arbitragem que, respeitosamente, na visão do CBAr, merecem ser revistos ou aprimorados.
Ao analisar o texto proposto para o art. 27-I para a Lei de Mercado de Capitais, contudo, o CBAr sugere a sua integral supressão sob o seguinte argumento:
A discussão sobre a criação de um microssistema de tutela coletiva societário, especialmente no âmbito da arbitragem, é complexa e envolve inúmeras variáveis. Existe intenso debate doutrinário sobre, basicamente, a existência de dois modelos possíveis: (i) a criação de um modelo arbitral que aplique as regras do microssistema de tutela coletiva judicial, previstas na Lei no 7.913/89 c/c Lei no 7.347/85 e na Lei no 8.078/90; e (ii) a criação de um modelo arbitral próprio, com regras distintas das que regulam o processo estatal. A escolha por qualquer desses modelos envolve, cada qual a seu modo, discussões profundas e adaptações legislativas cruzadas, a fim de que o microssistema de tutela coletiva arbitral dialogue e se compatibilize com o microssistema de tutela coletiva judicial.
Mais adiante na nota técnica, o CBAr destaca, ainda, que
A solução do PL de que as arbitragens coletivas obedeçam ao mesmo regramento do microssistema judicial de tutela coletiva, no que for compatível, não parece ser suficiente para resolver os diversos obstáculos para que as demandas coletivas se desenvolvam no âmbito da arbitragem. Isso porque a jurisdição estatal e a jurisdição arbitral apresentam peculiaridades próprias, e tal diferenciação aplica-se com mais razão ainda diante de processos coletivos. Por isso, um regime arbitral de tutela coletiva demandaria, salvo melhor juízo, a criação de regras próprias ou, quando menos, de adaptações completas e detalhadas à legislação que rege a jurisdição estatal.
A manifestação acima transcrita demonstra a preocupação da área arbitral como projeto apresentado a justificar que se tenha, no mínimo, uma discussão mais ampla sobre as mudanças propostas.
O acesso à arbitragem, seja de índole individual ou coletiva, não pode se abster de reflexões profundas acerca da observância ou não do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional previsto no art. 5º, inciso XXXV, da CF que diz que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Por se tratar de um processo arbitral com potencial de atingir grande número de pessoas que não estariam atuando diretamente neste processo, a cautela na sua aplicação justifica-se. A ampla abrangência de qualquer processo de índole coletiva (seja arbitral ou judicial) demandará sempre análise profunda dos legitimados, da extensão subjetiva da decisão e demais reflexos em ações individuais porventura em curso.
O PL 2.925/2023 foi apresentado 2 de junho de 2.023 inicialmente sob o regime de urgência, mas, posteriormente, houve “Apresentação da MSC n. 459/2023 (Mensagem de Cancelamento de Urgência), pelo Poder Executivo” que: “Solicita seja considerada sem efeito, e, portanto, cancelada, a urgência pedida com apoio no § 1 do art. 64 da Constituição para o Projeto de Lei nº 2.925, de 2023, que ‘Altera a Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e a Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, para dispor sobre a transparência em processos arbitrais e o sistema de tutela privada de direitos de investidores do mercado de valores mobiliários’, enviado ao Congresso Nacional com a Mensagem nº 345, de 2023”.
Em razão do cancelamento do pedido de tramitação de urgência, o PL segue a tramitação em regime de prioridade e, até a data em que elaborado este texto (deembro/2023), aguarda despacho do Presidente4.
Com o prosseguimento da sua tramitação regular será possível ampliar a discussão democrática sobre o projeto e suas relevantes propostas de alteração para o sistema legal brasileiro.
- Recomenda-se a leitura da íntegra do projeto: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2367421, consultado em 29.10.2023. ↩︎
- Norma Complementar 02/2023 – Centro de Arbitragem e Mediação Brasil-Canadá (ccbc.org.br), consultado em 30.10.2023. ↩︎
- https://cbar.org.br/site/wp-content/uploads/2023/09/20230904-nota-tecnica-cbar-sobre-pl-2925-2023.pdf, consultado em 27.10.2023 ↩︎
- PL 2925/2023 — Portal da Câmara dos Deputados – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br), consultado em 30.10.2023. ↩︎