Seguros: considerações sobre a proposta de alteração do art. 763 do Código Civil

12 de maio de 2025

Estas breves linhas se prestam a analisar as nuances da redação atual do art. 763 do Código Civil, um dos dispositivos de maior complexidade prática em matéria de seguros, em cotejo com a doutrina e a jurisprudência que se desenvolveram em torno de sua aplicação, tudo com vistas a uma melhor apreciação crítica da sua proposta de alteração.

A redação atual do art. 763 aduz que “não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação”.

No projeto de reforma do Código Civil, elaborado por comissão interna temporária do Senado Federal presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, propõe-se a seguinte redação:

Art. 763. Não terá direito à indenização o segurado que estiver em mora quanto ao pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação, exceto nos casos em que tiver adimplido substancialmente o contrato.

Parágrafo único. Para os fins deste artigo, a resolução do contrato depende de prévia interpelação judicial ou extrajudicial.

O dispositivo trata sobre os efeitos da mora do segurado quanto ao pagamento do prêmio. Pela redação original, a mora retira do segurado o direito de receber a indenização se o sinistro ocorrer durante a mora (“antes de sua purgação”).

A mora não tem o condão, portanto, de resolver o contrato de seguro, mas tão somente de suspender a cobertura, já que ao segurado ainda assiste o direito de purgá-la, antes do sinistro, normalizando os efeitos do contrato e, então, impondo ao segurador o dever de pagar a indenização pelo sinistro.

Ou seja, entre a mora e o sinistro, o que há é uma suspensão da cobertura, que não põe termo ao contrato em si. Ocorrendo o sinistro sem que tenha havido a purgação da mora, o escopo do contrato se exaure, o que poderia levar à compreensão de que o contrato seria resolvido naquele momento (sinistro durante a mora). Talvez fosse essa a leitura mais consentânea com a redação original do dispositivo.

No entanto, a doutrina caminhou no sentido da necessidade de prévia interpelação do segurado para que se procedesse à resolução do contrato. Prova disso é o Enunciado nº 376, aprovado nas IV Jornadas de Direito Civil do CJF/STJ, em 2007, com a seguinte redação: “para efeito de aplicação do art. 763 do Código Civil, a resolução do contrato depende de prévia interpelação”.

Destaque-se que a redação do enunciado tratava apenas da resolução do contrato, mantendo-se, assim, a possibilidade de interpretação do art. 763 do Código Civil no sentido da prescindibilidade de interpelação para constituição do segurado em mora.

Contudo, dando um passo além, o Superior Tribunal de Justiça deu outros contornos práticos ao dispositivo, com a redação da Súmula nº 616, de 2019, que aduz:

A indenização securitária é devida quando ausente a comunicação prévia do segurado acerca do atraso no pagamento do prêmio, por constituir requisito essencial para a suspensão ou resolução do contrato de seguro.

A Súmula consigna que a comunicação é essencial não apenas para que se proceda à resolução do contrato de seguro (como aduzia o Enunciado nº 376 das Jornadas), como também para que opere a suspensão da cobertura em razão da mora. Note-se que, em primeira análise, o teor da Súmula não parece ser incompatível com a regra geral do art. 397 do Código Civil, segundo a qual “o inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor”, somente se exigindo a interpelação judicial ou extrajudicial nos casos em que a obrigação não tem termo.

Ou seja, o atraso no pagamento do prêmio, apesar de configurar mora, não tem como efeito a suspensão do contrato e a consequente retirada do direito do segurado ao recebimento da indenização.

No entanto, na prática, ao se exigir a interpelação do segurado para que se chegue à suspensão da cobertura, a Súmula acaba retirando o principal efeito da mora pretendido pelo art. 763 do Código Civil, qual seja a perda do direito do segurado ao recebimento da indenização, levando-se à suspensão da cobertura e à neutralização da obrigação principal do segurador: pagar a indenização diante da ocorrência de um sinistro. Sendo assim, diante do descumprimento da obrigação principal do segurado (pagar o prêmio), retira-se a obrigação principal do segurador (pagar a indenização), em uma lógica parecida com a exceção de contrato não cumprido.

A regra compreende, assim, hipótese de ilícito caducificante, sendo a mora anterior ao sinistro o comportamento ilícito e a perda do direito à indenização a sua sanção.

Obviamente, sem a interpelação do segurado, outros efeitos de menor repercussão para o escopo do contrato, como a possibilidade de cobrança do prêmio acrescido dos consectários da mora (acessórios, portanto), continuam à disposição do segurador. Porém, reitere-se, o cerne do contrato de seguro (relação aleatória de pagamento de prêmio versus pagamento de indenização por sinistro coberto) resta neutralizado.

A alteração proposta pela Comissão é positiva ao promover maior proximidade à ratio do art. 763 do Código Civil, na linha do Enunciado nº 376 das Jornadas. Ou seja, a constituição em mora no termo da obrigação de pagamento do prêmio e, portanto, a suspensão da cobertura em face de sinistro que eventualmente ocorra antes da purgação da mora; e a imprescindibilidade de interpelação do segurado para que se empreenda a resolução do contrato.

Outro aspecto digno de nota é a proposta de positivação da teoria do adimplemento substancial na sistemática do art. 763, que passaria a excepcionar a regra do não recebimento da indenização (conferindo direito à indenização, portanto) quando o segurado tenha “adimplido substancialmente o contrato”.

É verdade que a redação proposta tem alguma correlação com outra orientação das IV Jornadas, o Enunciado nº 371, que assevera que “a mora do segurado, sendo de escassa importância, não autoriza a resolução do contrato, por atentar ao princípio da boa-fé objetiva”. Contudo, perceba-se que o enunciado trata da hipótese de “resolução do contrato”, não de suspensão da cobertura. Assim, a proposta de alteração parece ir além, consignando que o adimplemento substancial impediria não apenas a resolução (na linha já consagrada pelo Enunciado acima), como também a própria suspensão da cobertura, na medida em que a regra de não recebimento da indenização fica excepcionada, fazendo com que o segurado que adimpliu substancialmente o prêmio faça jus ao recebimento da indenização, ainda que haja, aproveitando a expressão do enunciado, “mora de escassa importância”.

Aqui está o principal problema da redação proposta: ao garantir o direito à indenização em caso de adimplemento substancial, o dispositivo poderá alterar consideravelmente a lógica econômica subjacente ao contrato de seguro, que é aleatório quanto à ocorrência do sinistro, mas que segue uma lógica econômica probabilística para a definição da cobertura e dos respectivos prêmios.

Ou seja, ao se inserir o adimplemento substancial, se estará deixando ao Poder Judiciário a conformação prática do dispositivo e dificultando a estipulação da base econômica prévia à contratação. Assim, apesar de se tratar de proposta consentânea com uma lógica de equidade nos contratos de seguro, atribuindo ao juiz, em cada caso, a verificação da amplitude da mora para, a partir disso, garantir ou retirar o direito à indenização do segurado, a alteração traria profundo impacto sistêmico, com dificuldades para a definição das bases econômicas do contrato e, portanto, para a conformação mercadológica do seguro, imprimindo um relevante elemento aleatório também na definição da cobertura e dos respectivos prêmios.

Ainda que se possa inserir na análise probabilística algum tipo de desvio padrão a partir de estudos estatísticos da jurisprudência, não se pode recusar a dificuldade advinda da ampliação da aleatoriedade e do subjetivismo em torno do contrato de seguro e de sua base econômica, não apenas individual, mas fundamentalmente setorial.

Como forma de contornar esse impacto sobre a lógica econômica do contrato de seguro, se de fato a redação do art. 763 do Código Civil se encaminhar para a positivação da teoria do adimplemento substancial, uma alternativa seria prever expressamente a possibilidade de o segurador decotar da indenização devida o valor do prêmio inadimplido pelo segurado, mesmo porque, se a mora é de pequena monta, o valor da indenização será maior, ao menos em situações típicas.

A rigor, ao menos nos casos em que o beneficiário da indenização é o próprio segurado, uma operação dessa natureza já seria viável por meio do instituto da compensação, previsto no art. 368 do Código Civil, segundo o qual, “se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as obrigações extinguem-se, até onde se compensarem. Contudo, se o beneficiário for uma terceira pessoa, tal possibilidade parece não se manter, tendo em vista a ausência de elemento típico da compensação, qual seja a reciprocidade de créditos e débitos das mesmas pessoas.

Assim, uma disposição específica autorizando a compensação, independentemente de ser o beneficiário o próprio segurado ou um terceiro, em prestígio ao equilíbrio econômico do contrato, seria bem-vinda. Providência semelhante poderia ser obtida a partir das próprias disposições contratuais, porém, a disciplina legal da hipótese parece recomendável a título de contraponto à eventual adoção, pelo Código Civil, da teoria do adimplemento substancial.

Em arremate, há dois aspectos fundamentais que decorrem da proposta de alteração do art. 763 do Código Civil, oriunda dos trabalhos da comissão do Senado Federal, a saber: i) a reforma da redação com vistas a uma adequação do dispositivo ao que se desenvolveu na doutrina e na jurisprudência sobre a matéria, notadamente para que a constituição em mora no termo da obrigação de pagamento do prêmio e, portanto, a suspensão da cobertura em face do sinistro que eventualmente ocorra antes da sua purgação e a imprescindibilidade de interpelação do segurado para que se empreenda a resolução do contrato de seguro; e ii) a positivação da teoria do adimplemento substancial a excepcionar a regra de perda do direito à indenização em caso de mora quanto ao pagamento do prêmio, caso o sinistro ocorra antes da sua purgação.

Quanto ao primeiro aspecto, a transposição, para o Código Civil, daquilo que já encontra guarida na cultura jurídica brasileira é positiva. No entanto, o segundo demanda uma leitura sistêmica na medida em que poderá trazer insegurança jurídica e, por conseguinte, onerar o setor de seguros como um todo, por impactar a lógica econômica subjacente à oferta desse tipo de contrato/produto no mercado, o que demandaria, se de fato a positivação do adimplemento substancial prevalecer, ajustes de redação para contemplar a possibilidade de compensação da indenização com o prêmio inadimplido.

Áreas de atuação relacionadas

Autores

Compartilhar