Tutelas Provisórias e o princípio da fungibilidade  

25 de janeiro de 0202

O Livro V do Título I do Código de Processo Civil de 2015 disciplina as tutelas provisórias e, diferentemente do Código anterior, deixou de dedicar tratamento específico ao processo cautelar, a indicar que a nova legislação procurou não se dedicar apenas à técnica que solucionaria uma demanda em que houvesse alguma urgência, para avançar para análise – ainda que provisória – mais aprofundada da matéria em discussão. 

Não se deve olvidar que independentemente da denominação que se adote, é imperioso destacar que se trata de decisões de caráter provisório e, por isso, poderá ser alterada ou modificada, a qualquer tempo, no curso do processo tal como dispõe o art. 296. Não obstante, o parágrafo único do art. 295, traz a disposição de que a tutela provisória conservará a eficácia durante o período de suspensão do processo. 

O CPC traz disposição expressa no sentido de que da decisão que conceder, negar, modificar ou revogar a tutela provisória, caberá ao Juiz motivar seu convencimento de modo “claro e preciso” diz textualmente o art. 298, especialmente para evitar arbitrariedades. 

É de suma importância que referido dispositivo legal tenha ganho o destaque devido pois, não raro, as decisões proferidas em processos de natureza cautelar e antecipatórias eram por demais evasivas e, correto que este dispositivo legal tenha imposto expressamente esse dever ao magistrado. 

O dever de adequada fundamentação nestas hipóteses está em linha com o direito ao contraditório, duplo grau de jurisdição e com os princípios gerais estabelecidos pelo novo Código, a exemplo dos artigos 7º, 9º e 10, e também expresso na Constituição Federal no art. 93, IX.  

O art. 489, § 1º do CPC também estabelece as hipóteses em que a sentença não se considerará fundamentada e deverá ser lido em conjunto com o indicativo da motivação clara e precisa do artigo anterior. 

Os arts. 294 a 311 do Código de Processo Civil trazem o regramento das Tutelas Provisórias e algumas classificações são úteis para a adequada compreensão da matéria. 

A tutela provisória poderá ser “de urgência” e de “evidência”. 

As tutelas de urgência, por sua vez, admitem, ainda, outra classificação: 

  1. podem ser de natureza antecipada (chamada também de satisfativa); 
  1. podem ser de natureza cautelar 

E, ainda, quanto à forma, poderão ser incidentais ou antecedentes, conforme dispõe o parágrafo único do art. 294. 

O pedido de tutela provisória de urgência na forma incidental será aquele formulado no bojo da própria petição inicial, sem necessidade de apresentação de pedido em separado e com regra específica, apenas as demonstrações formais dos requisitos para sua concessão. 

Nesta modalidade, por disposição expressa do art. 295, não haverá pagamento de custas. 

O pedido formulado, todavia, pela via antecedente enseja, além das dificuldades próprias da demonstração dos requisitos objetivos para sua concessão, a observância de um rito próprio estabelecido pelo CPC. 

Em linhas gerais a tutela de urgência, segundo dispõe o art. 300, poderá ser concedida quando presentes os elementos que “evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo” e poderá ser concedida de forma liminar ou após justificação prévia e, alinhado às regras anteriores, não deverá ser concedida se houver perigo de irreversibilidade dos efeitos desta decisão. 

Nesse sentido, a tutela de urgência de natureza antecipada requerida em caráter antecedente está regulamentada pelos arts. 303 e 304 do CPC e apresenta regramento e exigências bastante robustos para sua concessão, exigindo a evidência da probabilidade do direito e o perigo de dano ou de risco para o resultado útil do processo, de modo que adentra no debate do conteúdo do direito material em questão. 

Na tutela de urgência de natureza antecipada admite-se até mesmo a sua estabilização se contra a sua concessão não for interposto o respectivo recurso (art. 304, caput do CPC), instituto que não possui natureza jurídica de coisa julgada, conforme previsão expressa do art. 304, § 6º, do CPC. Não obstante, o mesmo dispositivo legal confere à decisão estável a segurança jurídica necessária, uma vez que assegura que esta somente poderá ser afastada por decisão futura que venha a revisar, reformar ou invalidar a decisão anterior, mas desde que proferida em ação ajuizada no prazo de dois anos contados da ciência da decisão que extinguir o processo (art. 304, § 4º do CPC).   

A tutela de urgência de natureza cautelar requerida em caráter antecedente encontra previsão nos arts. 305 a 310 do CPC e tem procedimento mais objetivo que a anterior, pois limita-se a buscar a preservação ou conservação de um determinado bem ou situação jurídica. 

Destaca-se desse procedimento a previsão do art. 308 que estabelece o prazo de 30 dias em caso de efetivação da tutela cautelar, para formulação do pedido principal. Dúvida poderia surgir acerca da natureza deste prazo, se de natureza processual ou material, tendo o STJ, até o momento, proferido decisões que não pacificaram a matéria eis que proferidas decisões em ambos os sentidos: 

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TUTELA CAUTELAR. CARÁTER ANTECEDENTE. PRETENSÃO PRINCIPAL. PRAZO DE 30 (TRINTA) DIAS. NATUREZA PROCESSUAL. CONTAGEM EM DIAS ÚTEIS. RECURSO PROVIDO. 

1. O prazo de 30 (trinta) dias para apresentação do pedido principal, nos mesmos autos da tutela cautelar requerida em caráter antecedente, previsto no art. 308 do CPC/2015, possui natureza processual, portanto deve ser contabilizado em dias úteis (art. 219 do CPC/2015). 

2. Recurso especial provido para determinar o retorno dos autos à origem, a fim de que seja processado o pedido principal já apresentado, cuja tempestividade deverá ser aferida , computando-se apenas os dias úteis. 

(REsp n. 1.763.736/RJ, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 21/6/2022, DJe de 18/8/2022.) 

Em sentido diverso: 

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. TUTELA CAUTELAR ANTECEDENTE. PRAZO PARA A FORMULAÇÃO DO PEDIDO PRINCIPAL. NATUREZA JURÍDICA. DECADENCIAL. CONTAGEM EM DIAS CORRIDOS. 

1. Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC (Enunciado n. 3 do Plenário do STJ). 

2. À luz dos arts. 806 e 808 do CPC/1973, este Tribunal Superior sedimentou entendimento jurisprudencial segundo o qual “a falta de ajuizamento da ação principal no prazo do art. 806 do CPC acarreta a perda da eficácia da liminar deferida e a extinção do processo cautelar” (Súmula 482 do STJ). À época, a orientação jurisprudencial deste Tribunal era pela natureza decadencial do prazo de 30 dias para o ajuizamento da ação principal. Precedentes. 

3. Na vigência do CPC/2015, mantem-se a orientação pela natureza decadencial do prazo de 30 dias para a formulação do pedido principal (art. 308 do CPC/2015), razão pela qual deve ser contado em dias corridos, e não em dias úteis, regra aplicável somente para prazos processuais (art. 219, parágrafo único). 

4. No caso dos autos, o recurso não pode ser conhecido porque o acórdão recorrido está em conformidade com a orientação jurisprudencial deste Tribunal. Observância da Súmula 83 do STJ. 

5. Agravo interno não provido. 

(AgInt no REsp n. 1.982.986/MG, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 20/6/2022, DJe de 22/6/2022.)  

Considerando que a lei se ocupou de bem delinear as hipóteses de cabimento de cada uma das tutelas de urgência, prevendo requisitos e prazos distintos para cada uma, caberia o questionamento acerca da necessidade de previsão da aplicação do princípio da fungibilidade de meios a estas medidas, em linha com o que já era previsto no art. 273, § 7º do CPC/73 sobre as medidas cautelares e a tutela antecipada. 

O princípio da fungibilidade, inicialmente aplicado na esfera recursal, pode ser definido como aquele que permite a admissibilidade de uma medida judicial em detrimento de outra que seja a adequada, desde que preenchidos alguns requisitos objetivos que o STJ1 no julgamento do AgInt no AgInt no REsp 1986576/RS assim resume:  

“A aplicação do princípio da fungibilidade depende do preenchimento dos seguintes requisitos: i) dúvida objetiva quanto ao recurso a ser interposto; ii) inexistência de erro grosseiro; e iii) que o recurso interposto erroneamente tenha sido apresentado no prazo daquele que seria o correto”. 

Estes requisitos para a admissibilidade da aplicação do princípio da fungibilidade, seja para recursos, seja para outros institutos, continuam vigentes e, no caso das tutelas de urgência, o CPC de 2015 manteve a técnica de prever expressamente o seu cabimento, para não depender das análises casuísticas dos Tribunais. 

Dessa forma, não obstante o Código de Processo Civil tenha trazido as definições, requisitos legais e distinções entre ambos os institutos, foi prudente em prever expressamente no art. 305, p.u., a possibilidade de o juiz aplicar o princípio da fungibilidade entre os pedidos e, no caso, aplicar o rito previsto no art. 303 que se aplica à tutela de urgência de natureza antecipada. 

Acertada essa previsão do CPC porque, a despeito das distinções estabelecidas pelo Código, a aproximação entre os requisitos exigidos – afinal, ambas as tutelas são requerimentos provisórios e de urgência – poderia trazer dificuldade na classificação e decisão acerca de qual das duas medidas judiciais adotar e, em linha com os princípios do CPC/2015, que trata especialmente do máximo aproveitamento dos atos processuais e do princípio da cooperação, a previsão expressa de que um pedido cautelar possa ser admitido e convertido como antecipatório deve ser muito bem visto. 

As previsões gerais dos arts. 296 e 297 do Código de Processo Civil também dão suporte ao entendimento de que seria cabível a fungibilidade entre as tutelas provisórias de urgência.  

Isto porque, estes artigos que constam das “disposições gerais” sobre as tutelas provisórias estabelecem que estas podem ser alteradas a qualquer momento e, ainda, que o juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para a “efetivação da tutela provisória”, a demonstrar que tanto poderia ser concedida uma tutela de urgência na modalidade antecipada ou cautelar. 

O CPC, contudo, estabelece de forma expressa no art. 305, parágrafo único, o cabimento da fungibilidade entre as medidas se for requerida a medida cautelar e o juiz entender que o adequado seria o pedido de tutela antecipada, sendo silente quanto a situação inversa. 

Neste cenário, surge a dúvida (legítima) no sentido de se definir se também seria aplicável a fungibilidade diante de um pedido de tutela antecipada requerida em caráter antecedente e o juiz entendesse que, embora não preenchidos os requisitos, a medida adequada seria a cautelar e determinasse a conversão do rito. 

Trata-se de interessante questão de direito em que somente cada caso concreto poderá definir se estariam presentes ou não os requisitos objetivos para o cabimento e concessão de tutelas de urgência, seja antecipatória ou cautelar, mas, ao menos em teoria, poder-se-á admitir que a fungibilidade de meios deverá ser para ambas as medidas e não apenas em um sentido somente porque definida dentro do capítulo específico da tutela cautelar.  

A doutrina em geral, conforme exemplo de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero2, conferem ampla extensão à aplicação da fungibilidade: 

O novo Código não repetiu com a mesma extensão a regra da fungibilidade entre as tutelas que podem ser obtidas mediante a técnica antecipatória, na medida em que o art. 305, parágrafo único, CPC, refere-se à tutelas provisórias requeridas em caráter antecedente. Porém, tendo em conta a necessidade de aproveitamento dos atos processuais – por força do princípio da duração razoável do processo e da necessidade de promoção da economia processual dele decorrente – e a necessidade de se privilegiar a prolação de decisões de mérito em detrimento de decisões puramente formais para a causa (art. 317, CPC), é certo que, atendidos os pressupostos legais para concessão, há ampla fungibilidade entre as tutelas provisórias: quer formulado o pedido de maneira incidental, quer de maneira antecedente, há fungibilidade entre as tutelas que podem ser obtidas mediante a técnica antecipatória. 

Justifica-se essa interpretação uma vez que deve haver paridade entre as situações e, ainda, pelo fato de que a conversão de uma medida incialmente pleiteada como de caráter satisfativo ou antecipatória em natureza cautelar é até menos gravosa (não admite, por exemplo, a estabilização), de modo que não apresenta incompatibilidade no mundo dos fatos, vez que a lei já conferiu expressamente a possibilidade de aplicação da fungibilidade para “expandir” o instituto, de modo que se deve admitir que também se possa “restringi-lo” ao converter o rito para cautelar.  

O STJ3, seguindo essa linha de entendimento, já decidiu no julgamento dos EDcl em Resp nº 1.738.656/RJ que o princípio da adstrição cederia aos demais princípios que regem as medidas de urgência:  

“[…] em se tratando de tutelas provisórias, gênero do qual são espécies a tutela de urgência (que se subdivide em cautelar e satisfativa) e a tutela da evidência, é cediço que o princípio da adstrição cede diante da necessidade de aplicação do princípio da fungibilidade, de modo que, independentemente do rótulo dado pela parte, poderá o julgador, diante da causa de pedir que lhe fora apresentada, deferir uma pela outra, desde que presentes os respectivos pressupostos”. 

No Tribunal de Justiça de São Paulo também já se reconhece a incidência do princípio da fungibilidade de maneira geral em diversos julgados, a indicar o encaminhamento da sedimentação da jurisprudência nesse sentido: 

AGRAVO DE INSTRUMENTO – CONTRATOS BANCÁRIOS – TUTELA CAUTELAR ANTECEDENTE – A ENTRADA EM VIGOR DO CPC DE 2015 ABOLIU APENAS A AÇÃO CAUTELAR AUTÔNOMA DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS, SENDO ADMISSÍVEL, À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA INSTRUMENTALIDADE, FUNGIBILIDADE, ECONOMIA E EFETIVIDADE, O RECEBIMENTO DE CAUTELAR ANTECEDENTE PREPARATÓRIA, PERMITINDO A INSTRUÇÃO OU O EXAME DA CONVENIÊNCIA DA AÇÃO PRINCIPAL – REQUISITOS PREENCHIDOS PARA A CONCESSÃO LIMINAR DO PEDIDO – DECISÃO MANTIDA. – RECURSO DESPROVIDO.  
 
(TJSP;  Agravo de Instrumento 2234573-80.2022.8.26.0000; Relator (a): Edgard Rosa; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Votorantim - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 09/11/2022; Data de Registro: 09/11/2022)  

2100169-68.2017.8.26.0000 Classe/Assunto: Agravo de Instrumento / Cheque Relator(a): Plinio Novaes de Andrade Júnior Comarca: São Paulo Órgão julgador: 24ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 29/06/2017 Data de publicação: 30/06/2017 Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO TUTELA CAUTELAR REQUERIDA EM CARÁTER ANTECEDENTE . […] EMENDA À PETIÇÂO INICIAL Decisão que determinou a emenda à inicial, nos termos do art. 303, § 6º, do novo CPC Possibilidade Prosseguimento da tutela cautelar antecedente pelo procedimento da tutela antecipada antecedente Art. 305, parágrafo único, do novo CPC Aplicação do princípio da fungibilidade entre as tutelas de urgência Medida que não acarreta prejuízo à autora e assegura a efetividade do processo Decisão mantida Recurso improvido, neste aspecto. RECURSO CONHECIDO EM PARTE E IMPROVIDO, NA PARTE CONHECIDA 

AGRAVO de instrumento. Ação Declaratória de Inexigibilidade de Débito c.c. Indenização por Dano Moral. Contrato de prestação de serviços. Autora que alega cobrança indevida de valores. INCONFORMISMO deduzido no Recurso. EXAME: Agravante que argumenta a ocorrência de decisão “extra petita”, ante a ausência de pedido de tutela cautelar antecedente. Incidência do princípio da fungibilidade entre a tutela cautelar e a tutela antecipada. Ausência de prejuízo. Decisão mantida. RECURSO NÃO PROVIDO.  
 
(TJSP;  Agravo de Instrumento 2051086-10.2022.8.26.0000; Relator (a): Daise Fajardo Nogueira Jacot; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional X – Ipiranga - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/06/2022; Data de Registro: 30/06/2022) 

Registre-se, por fim, que em qualquer hipótese em que se entenda cabível a aplicação do princípio da fungibilidade entre os institutos deverá haver clara e objetiva alteração do rito processual para que não haja nulidades e prejuízos à defesa. 

  1. Rel.: Minª.: Regina Helena, DJE 13.03.2023. ↩︎
  2. Novo Código de Processo Civil Comentado, São Paulo: RT, 2015, p. 307-308. ↩︎
  3. EDcl em Resp 1.738.656/RJ, Rel.: Minª Nancy Andrighi, DJe 10.03.2020. ↩︎

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