O presente artigo objetiva trazer reflexões sobre o uso que se tem feito de ações de produção antecipada de provas como mecanismo prévio ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
1. Origem e primeiras críticas
O presente artigo pretende questionar se é possível o uso de ações de produção antecipada de provas como mecanismo processual antecedente à instauração de incidentes de desconsideração da personalidade jurídica.
O Direito é construído para proteger interesses (afirmava-o, há muito, Jhering), e, no que diz respeito à desconsideração da personalidade jurídica, não foi diferente.
Embora haja controvérsia sobre o leading case que inaugurou o tema, a maior parte da doutrina entende que o caso Salomon v. Salomon & Co. Ltd., julgado na Inglaterra em 1897, é o precedente que, efetivamente tratou do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
Embora a decisão que entendeu por desconsiderar a personalidade jurídica tenha sido reformada, trata-se de precedente importante para a fixação da tese de que o instituto visa tutelar a relação entre credores e devedores.
É importante que esse conceito esteja bem claro, na medida em que, hodiernamente, há uma multiplicidade de diplomas legislativos que permitem o uso da desconsideração da personalidade jurídica sem se atentar à finalidade com que ele fora criado.
De um modo bastante simplório, quando se começa a pensar em criação de pessoas jurídicas, assim se procede pensando em criar mecanismos de segregação de ativos e dimensionamento de riscos. A esse título, tenha-se em mente a criação das Companhias das Índias Orientais (em 1602) e das Companhias das Índias Ocidentais (em 1621).
O escopo do nascimento de tais companhias fora, justamente, viabilizar a atividade econômica, in casu, a de empresa marítima, dado que o risco do exercício de tal atividade pelo particular praticamente inviabilizaria que ela lograsse êxito.
Dessa forma, pode-se dizer sem melindres que desconsiderar-se a personalidade jurídica é hipótese excepcional, caso se parta da perspectiva da natureza do instituto.
Ainda assim – e essa é uma primeira crítica – o primeiro diploma legislativo que tratou da desconsideração da personalidade jurídica foi o CDC, do qual se destaca o art. 28, caput e seu parágrafo quinto1, o qual permite que haja o lifting of corporate veil apenas pelo fato de a personalidade jurídica ser “de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.
Os diplomas legislativos que se seguiram também apresentaram textos desalinhados com os objetivos originais do instituto (a esse título, por exemplo, observe-se o teor do art. 4.º da lei 9.605/1998 e do art. 34 da lei 12.529/11).
Apenas com o advento do Código Civil de 2002 é que se estabeleceu, em seu art. 50, que a desconsideração da personalidade jurídica ocorrerá em caso de abuso de tal instituto, e referido abuso se caracterizará pelo desvio de finalidade (prática de atos ultra vires societatis) ou pela confusão patrimonial.
Mesmo assim, os conceitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial foram matéria doutrinária até o advento da lei 13.784, de 20/9/19, que, entre outras medidas, acresceu ao art. 50 do Código Civil, os parágrafos primeiro e segundo, para trazer ao Direito Positivo alguma conceituação.
2. O CPC de 2015 e o incidente de desconsideração da personalidade jurídica
Até a entrada em vigor do CPC de 2015, havia na jurisprudência uma ausência de uniformidade no procedimento de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica2.
O tratamento errático do instituto implicava que, feito o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, não era possível saber em que medida garantias constitucionais como o contraditório e a ampla defesa (CF/1988, art. 5º, LV) seriam observadas. E mesmo que fossem observadas num determinado feito, não havia qualquer garantia de que, em novo litígio contra a mesma empresa, observar-se-ia igual (ou algum) procedimento.
Dessa forma, o CPC de 2015, com a intenção de uniformizar o modo de condução do instituto, fez inserir em seus arts. 133 a 137 o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Apesar de os dispositivos tratarem do tema com certa discrição, registrou-se no art. 135, que o sócio ou a pessoa jurídica seriam citados para “manifestar-se e requerer as provas cabíveis”.
Isso não significa dizer, entretanto, que a existência de um procedimento implicava, necessariamente, sua observância de modo sereno e a conferir aos empresários previsibilidade e segurança jurídica. Exemplificativamente, até a reforma trabalhista ocorrida em 2017, a Justiça do Trabalho entendia que a responsabilização de sócios por débitos trabalhistas estava fundada na “teoria menor” e aplicava, por analogia, o art. 28, § 5º, do CDC. Com a edição da lei 13.467/17, fez-se inserir na Consolidação das Leis do Trabalho o art. 855-A, segundo o qual, naquela justiça especializada, dever-se-ia observar o procedimento previsto nos arts. 133 a 137 do CPC/15, o que, por consequência, deveria implicar, nos termos do art. 134, § 1º do referido diploma, a observância “(d)os pressupostos previstos em lei”, isto é, no Código Civil. Novamente, não é isso que se verifica na totalidade dos casos, o que, mais uma vez, acrescenta um ingrediente de risco ao exercício da atividade empresarial3.
3. O uso do procedimento de produção antecipada de provas: Ato ultra vires procedimental?
Um fenômeno cuja existência de discussão tem se observado é o uso do procedimento de produção antecipada de provas (regido pelos arts. 381 a 383 do CPC/15) como medida antecedente à instauração de incidentes de desconsideração da personalidade jurídica.
Conquanto parte da doutrina entenda pela possibilidade de assim se proceder4, algumas considerações são pertinentes de serem feitos a título de fomentar o debate para que se chegue a um resultado condizente com as razões de ser do instituto da desconsideração da personalidade jurídica e do incidente criado para promovê-la.
Primeiramente, entende-se que, de fato, ao se ajuizar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica devem ser demonstrados os pressupostos legais específicos para a sua ocorrência (art. 134, § 4º, do CPC/15) e essa prova nem sempre é de simples obtenção.
Feita essa primeira ressalva, a preocupação que abre as presentes reflexões é aquela concernente ao disposto no art. 382, § 4º, do CPC/15: o procedimento de produção antecipada de provas não admite defesa ou recurso, “salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário”. Ou seja, o comando da literalidade legislativa é no sentido de preservar o direito à ampla defesa do requerente, e, ainda assim, limitado aos casos em que a prova por ele pleiteada tenha sido totalmente indeferida5. Vale dizer: foi feito um esforço jurisprudencial e legislativo para que houvesse, nas discussões de desconsideração da personalidade jurídica, preservação do direito de defesa, e, agora, parte da doutrina e da jurisprudência postula a possibilidade de utilização de um procedimento, que, por definição, não admite defesa ou recurso.
Preocupação adicional surge ao se examinar as hipóteses de cabimento do procedimento de produção antecipada de provas, a fim de poder se constatar a dificuldade de conciliação entre esse instituto e o seu uso preparatório para incidentes de desconsideração da personalidade jurídica.
O inciso I do art. 381 do CPC/15 permite sua utilização quando haja um “fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação”. Ora, como a parte teria um “fundado receio”, sem a existência de provas, ao menos indiciárias? Afinal, os fatos devem estar sob o risco de se tornarem de “impossível ou muito difícil” verificação.
O inciso II do art. 381 do CPC/15 causa ainda mais espécie: permite-se a produção antecipada de provas nos casos em que “a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito”. Vale dizer, a se admitir a produção antecipada de provas para essa finalidade, estar-se-ia admitindo que produzir ou perseguir a prova de desvio de finalidade ou confusão patrimonial viabilizaria “a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito”. Isto é, a se admitir essa estratégia processual, o uso da produção antecipada de provas seria um meio de coerção do devedor à composição com o propósito de evitar que ele fosse submetido a um incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Com efeito, não se vislumbra o motivo pelo qual um procedimento de produção antecipada de provas preparatória de um incidente de desconsideração da personalidade jurídica viabilizaria uma solução consensual, exceto, como mencionado, por um certo caráter de coerção, de a parte devedora não querer ver movido contra si um pedido dessa natureza. E se é esse o receio da parte devedora, parece difícil de atribuir outro adjetivo a esse uso do procedimento de produção antecipada de provas que não o caráter coercitivo.
Por fim, o inciso III do art. 381 do CPC/15 permite o uso da produção antecipada de provas nos casos em que “o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação”. Primeiramente, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não justifica ou evita o ajuizamento de ação. A rigor, a ação já existe (se não, de incidente não se cuidaria) e, portanto, não se evitará nem se justificará o litígio. Ao contrário, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, caso julgado procedente, terá apenas o condão de ampliar o polo passivo da ação preexistente.
4. À guisa de considerações finais
Como se demonstrou, superar as incongruências existentes entre os incisos do art. 381 do CPC/15 e o incidente de desconsideração da personalidade jurídica dada a natureza diversa de premissas em que assentados os institutos, é uma tarefa árdua. Inclusive, importante mencionar que o art. 382 do CPC, em seu caput, afirma que “na petição, o requerente apresentará as razões que justificam a necessidade de antecipação da prova e mencionará com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair”. Indaga-se: se o credor já consegue mencionar com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair, ele de fato não tem elementos para o incidente de desconsideração da personalidade jurídica?
Uma vez que há precedente do STJ sustentando a possibilidade de exercício do contraditório e ampla defesa no procedimento de produção antecipada de provas, primeiramente é o caso de se questionar se não seria necessária a alteração do art. 382, § 4º, do CPC/15, a fim de se evitar o caminho da interpretação contra legem.
E, ainda no escopo de sugestões de reformas legislativas, se se entende possível, em alguma medida, a compatibilização de produção antecipada de provas com o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, não nos parece que o seja com a redação vigente.
Alguns caminhos podem ser pensados. Pode-se imaginar, por exemplo, a inserção de um inciso específico no art. 381 do CPC/15 para tratar, exatamente, da possibilidade de prevenir um incidente de desconsideração da personalidade jurídica (inclusive com o escopo de evitar que a parte promovente seja condenada em honorários sucumbenciais pelo fato de ter promovido uma investida adicional contra a sociedade devedora com o fim de atingir seus sócios). Todavia, ainda que se admitisse esse caminho, necessário refletir que efeitos teria uma decisão em procedimento de produção antecipada de provas que não permitisse caracterizar nem desvio de finalidade nem confusão patrimonial. Nessa hipótese, ainda assim, a parte teria direito a promover um incidente de desconsideração da personalidade jurídica? Ou a decisão estaria acobertada pelo manto da preclusão?
Esses caminhos devem ser cercados do cuidado de que não se desvirtue o procedimento de produção antecipada de provas para convertê-lo, neste caso, apenas em uma medida que (1) dificulte o direito de defesa da parte devedora ou (2) não se o utilize apenas para evitar encargos sucumbenciais. Não se postula aqui a preservação de situações de insolvência, mas, sim, a retomada do escopo do instituto da desconsideração da personalidade jurídica: preservar as relações entre credores e devedores. Com efeito, o uso dos institutos de Direito processual civil não deve ser fonte de aumento de custos de transação e assimetrias informacionais, muito menos com o risco de deturpar garantias processuais relacionadas ao Direito de defesa. Ver-se frustrada uma execução é pesaroso, mas, em nome do adimplemento, deixar-se de lado garantias constitucionais é um custo social maior.
- Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (…). § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. Disponível em: . Acesso em 14/05/2025. ↩︎
- Nesse sentido, cf. NUNES, M. T. G. Desconstruindo a Desconsideração da Personalidade Jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2007. ↩︎
- Trata-se de um alerta, não de um mau agouro. A esse título, destaque-se o julgamento do AgInt no AREsp nº 2.139.331-MS, em que a Quarta Turma do STJ fixou a orientação de que “o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica a partir da Teoria Maior (art. 50 do Código Civil) exige a comprovação de abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pelo que a mera inexistência de bens penhoráveis ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa não justifica o deferimento de tal medida excepcional”. ↩︎
- Afirma Paulo Henrique dos Santos Lucon que “é plenamente viável a produção antecipada de prova como medida de verificação de viabilidade (ou não) de futuro incidente de desconsideração”. Cf. LUCON, P. H. S. Provas no Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica e sua Autonomia em Relação à Demanda Principal. In: ADAMEK, M. V. V.; CONTI, A.N. (Coords.). Desconsideração da Personalidade Jurídica: pressupostos – consequências – casuística. Vol. II. São Paulo: Quartier Lartin, 2024, p. 181-192 (185) ↩︎
- Não se desconhece a orientação do STJ no sentido de que “a melhor interpretação para o comando do art. 382, § 4º, do CPC/2015, à luz dos princípios da ampla defesa e do contraditório, não é a literal, senão aquela que permite a manifestação e a irresignação da parte requerida, sobretudo para se contrapor à produção de prova desnecessária ou descabida na espécie, bem assim para questionar, por meio de recurso, os atos praticados durante o trâmite processual” (STJ, Quarta Turma, Relator Min. Antônio Carlos Ferreira, AgInt no AREsp nº 1.948.594-MG, j. em 29/11/2023). Todavia, o precedente não possui caráter vinculante e nem é uma garantia de que a parte demandada no procedimento de produção antecipada de provas poderá exercer o contraditório e a ampla defesa. ↩︎