Particularidades da cessão de crédito e cessão de direito litigioso

Entende-se por cessão de crédito, prevista nos arts. 286 a 298 do Código Civil, o negócio jurídico pelo qual o credor de uma obrigação, chamado cedente, transfere seus direitos a um terceiro, chamado cessionário, incluindo todos os acessórios como os juros e encargos legais incidentes.  

Por sua vez, a cessão de direito litigioso refere-se à transferência de titularidade de uma pretensão pendente de confirmação em juízo, especialmente quanto à certeza, exigibilidade e liquidez da referida pretensão, podendo ser passível ou não de liquidação prévia. 

A parte que recebe um direito de crédito ou direito litigioso mediante cessão sujeita-se, após a efetivação da sucessão processual, a todos os seus efeitos decorrentes das características originais e supervenientes do crédito que podem ser opostas pelo devedor, conforme a regra do art. 294, do Código Civil.  

O tema é relevante do ponto de vista prático, pois a negociabilidade de créditos e direitos litigiosos por meio de cessão tem fomentado o mercado de recuperação de crédito, assim como dos fundos de investimento em direitos creditórios e até mesmo a cessão de precatórios exigíveis em face do Estado. 

  • A notificação prévia do art. 290 do Código Civil 

Nos termos do art. 290 do CC, “a cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita”. 

Acerca do tema, tanto a doutrina quanto a jurisprudência afirmam que o objetivo do referido artigo é resguardar o direito do devedor de ter conhecimento de quem é o verdadeiro credor para que o pagamento seja efetivo, sob pena de ineficácia da cessão. 

Portanto, é um dispositivo de proteção para afastar a máxima de “quem paga errado paga duas vezes”. 

Sendo assim, caso o devedor efetuar o pagamento ao credor originário sem conhecimento da cessão, então o cessionário não pode se insurgir contra o devedor, pois esta é ineficaz em relação a ele desde o início. Por outro lado, se não houve pagamento e o novo credor requer a substituição no lugar do cedente, não há prejuízo alegável pelo devedor quanto ao pagamento, ressalvadas as exceções relativas ao crédito (art. 294, do CC). 

  • As exceções relativas ao crédito  

Quanto às exceções relativas ao crédito, o art. 294, do CC, permite que o devedor oponha ao cessionário as exceções relacionadas a ele, as quais são transferidas juntamente a cessão (ônus e bônus). 

Tais exceções relativas ao crédito podem decorrer tanto de circunstâncias relacionadas à titularidade do cedente quanto do cessionário. 

O momento adequado para a oposição só pode ser no conhecimento de que o crédito foi transferido, pois antes disso vale a regra de proteção do art. 290, o qual prevê a ineficácia da cessão enquanto o devedor não for notificado. O conhecimento da transferência pode ser tanto pela notificação quanto substituição processual no caso de direito litigioso. 

Esse ponto é importante porque cada caso pode apresentar uma questão a ser levantada. Como visto, o cessionário carrega com o crédito todas as exceções oponíveis ao cedente até a cessão, ficando sujeito a situações   como, por exemplo, a prescrição ou circunstância processual que leve à extinção do feito sem resolução do mérito, a exemplo da ausência de regularização de um espólio. 

  • Os diferentes aspectos da cessão de crédito de acordo com as fases do processo 

O Código de Processo Civil de 2015 trata especificamente do cessionário enquanto parte em dois momentos: na fase de conhecimento ou no processo de execução. 

E aqui surge a primeira distinção que a jurisprudência tem seguido, de acordo com o CPC: 

  1. Na fase de conhecimento, o cessionário não pode ingressar em juízo sucedendo o cedente sem consentimento da parte contrária (art. 109, § 1º, do CPC); 
  1. No processo de execução (ou cumprimento de sentença) o cessionário não depende de anuência para substituir o cedente porque o art. 778, § 1º, inciso III diz que ele pode promover a execução na qualidade de “credor”. 

O Superior Tribunal de Justiça tem aplicado a diversos outros casos um precedente relacionado aos precatórios (Tema Repetitivo nº 1), no qual restou firmada a seguinte tese: “A substituição processual, no polo ativo da execução, do exequente originário pelo cessionário dispensa a autorização ou o consentimento do devedor”. Abaixo, segue o excerto para conferência:  

RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. PROCESSO CIVIL. CESSÃO DE CRÉDITO. EXECUÇÃO. PRECATÓRIO. SUCESSÃO PELO CESSIONÁRIO. INEXISTÊNCIA DE OPOSIÇÃO DO CEDENTE. ANUÊNCIA DO DEVEDOR. DESNECESSIDADE. APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 567, II, DO CPC. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 62/2009. 1. Em havendo regra específica aplicável ao processo de execução (art. 567, II, do CPC), que prevê expressamente a possibilidade de prosseguimento da execução pelo cessionário, não há falar em incidência, na execução, de regra que se aplica somente ao processo de conhecimento no sentido da necessidade de anuência do adversário para o ingresso do cessionário no processo (arts. 41 e 42 do CPC). 2. “Acerca do prosseguimento na execução pelo cessionário, cujo direito resulta de título executivo transferido por ato entre vivos – art. 567, inciso II do Código de Processo Civil –, esta Corte já se manifestou, no sentido de que a norma inserta no referido dispositivo deve ser aplicada independentemente do prescrito pelo art. 42, § 1º do mesmo CPC, porquanto as regras do processo de conhecimento somente podem ser aplicadas ao processo de execução quando não há norma específica regulando o assunto” (AgRg nos EREsp 354569/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, CORTE ESPECIAL, DJe 13/08/2010). 3. Com o advento da Emenda Constitucional nº 62, de 9 de dezembro de 2009, todas as cessões de precatórios anteriores à nova redação do artigo 100 da Constituição Federal foram convalidadas independentemente da anuência do ente político devedor do precatório, seja comum ou alimentício, sendo necessária apenas a comunicação ao tribunal de origem responsável pela expedição do precatório e à respectiva entidade. 4. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008. (STJ – Recurso Especial nº 1.091.443 – SP (2008/0217686-7) – 6ª Turma – Dje de 29.05.2012) 

Na ocasião, destacou a Ministra Relatora Maria Thereza de Assis Moura que “como há norma específica aplicável ao processo de execução (art. 567, II, do CPC), que prevê expressamente a possibilidade de prosseguimento da execução pelo cessionário, não há falar em incidência no caso de regra que se aplica somente no processo de conhecimento (arts. 41 e 42 do CPC)”. O entendimento expresso no julgamento do Recurso Repetitivo, ainda sob a égide do CPC de 1973, permanece vigente até os dias atuais. 

Sobre o tema, dois recentes acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferidos pelas 15ª e 11ª Câmara de Direito Privado, nos autos dos Agravos de Instrumento nº 2045385-05.2021.8.26.0000 e nº 2094135-38.2021.8.26.0000, respectivamente, decidiram no sentido de que, em se tratando de cumprimento de sentença já transitada em julgado, vale a segunda diretriz que admite a substituição sem anuência do executado (devedor): 

INGRESSO DE CESSIONÁRIO DE CRÉDITO EM AÇÃO EXECUTIVA – Desnecessidade de consentimento do cedente – Inaplicável a regra do processo de conhecimento – Existência de norma própria – Inteligência do disposto no artigo 778, parágrafo 1º, inciso III, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil de 2015 – Levantamento de valores constritos – Acolhimento – Penhora sobre faturamento da empresa – Desnecessidade – Ordem preferencial – Valores constritos cuja autorização de levantamento se admite – Execução garantida por bem imóvel – Decisão parcialmente reformada para deferir a substituição do polo ativo pela cessionária, ora agravante, bem como autorizado o levantamento dos valores constritos – Agravo de instrumento parcialmente provido nestes termos. (TJSP – Agravo de Instrumento nº 2045385-05.2021.8.26.0000 – 15ª Câmara de Direito Privado – Dje de 07.07.2021) 

No caso em destaque, o Desembargador Relator Mendes Pereira ponderou que “o art. 109, § 1º, do Código de Processo Civil não admite o ingresso do cessionário em juízo sem o prévio consentimento da parte contrária”, observando, todavia, que a situação não ocorreu no presente caso. 

Dessa forma, assentou que, por tratar-se de execução de título extrajudicial, com regulamentação própria no art. 778, parágrafo 1º, inciso III, parágrafo 2º, do CPC, tal sucessão independe de consentimento do executado. Ainda, afirmou que “a agravante demonstrou de forma idônea ter sido lhe cedido o crédito perseguido no feito originário, conforme se observa dos documentos juntados às fls. 202/204 dos autos principais, desincumbindo-se do ônus que lhe competia. […] Assim, a substituição da parte deve ser deferida, com a inclusão da agravante no polo ativo da execução”. 

  • A particularidade da cessão de direitos litigiosos passíveis de liquidação 

Dentre os processos no quais o Sturzenegger e Cavalcante Advogados Associados tem atuado, parte significativa estão na fase de liquidação e/ou cumprimento de sentença, ou seja, aguardando definição do STJ a respeito de diversas teses levantadas nas respostas às liquidações e/ou impugnações ao cumprimento de sentença. 

Tais teses, ainda em discussão, abordam desde questões como a abrangência do título executivo e legitimidade das partes, até questões de cálculos, como o termo final da incidência de juros, o que pode impactar tanto no valor, quanto na própria existência do crédito.  

Havendo a cessão de um direito litigioso passível de liquidação, deve-se tomar o cuidado de resguardar as eventuais exceções opostas ao eventual crédito, notadamente por questões processuais verificadas no curso da lide, tais como defeitos de representação, litispendência, coisa julgada, abandono de processo, ausência de título executivo, nulidade do pedido de execução sem liquidação prévia, entre outros, os quais não são superados pela cessão ao novo titular e continuam demandando decisão judicial específica nos autos. 

Não há julgado pacificando qualquer controvérsia sobre a possibilidade ou não de cessão de crédito ainda passível de liquidação, mas em se tratando de direito litigioso disponível não há nada que proíba a cessão de acordo com o Código Civil e o Código de Processo Civil.  

Quanto à peculiaridade de se tratar de crédito ainda não liquidado, o STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1.837.413/PR, tomou como premissa a possibilidade de cessão do direito litigioso, reforçando o transporte das exceções e características do crédito dessa natureza ao cessionário: 

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO. ALIENAÇÃO DE DIREITO LITIGIOOSO POR ATO ENTRE VIVOS. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. CESSÃO DE CRÉDITO EFETIVADA PELO EXEQUENTE NO CURSO DA EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL E DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO. SUCESSÃO PROCESSUAL. EXCLUSÃO DA PARTE CEDENTE DA LIDE E INCLUSÃO DA CESSIONÁRIA. SUJEIÇÃO TANTO AOS BÔNUS QUANTO AOS ENCARGOS DECORRENTES DO NEGÓCIO PELA PARTE ADQUIRENTE. COISA JULGADA MATERIAL QUE ALCANÇA APENAS A CESSIONÁRIA. PENHORA SOBRE VALORES DO CEDENTE QUE SE MOSTRA INDEVIDA. PROCEDÊNCIA DOS EMBARGOS DE TERCEIRO. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. RECURSOS ESPECIAIS DESPROVIDOS. 

[…] 4. Na alienação de coisa ou direito litigioso, os efeitos da sentença estendem-se ao adquirente/cessionário, tendo este ingressado ou não no feito, nos termos do art. 42, § 3º, do CPC/1973 (art. 109, § 3º, do CPC/2015). Havendo a sucessão processual, com a exclusão do alienante/cedente da lide e a inclusão do adquirente/cessionário, como na hipótese, com mais razão sujeita-se este aos efeitos da sentença – sejam eles positivos ou negativos -, dada a sua legitimidade ordinária superveniente, não mais alcançando o alienante/cedente. (STJ – Recurso Especial nº 1.837.413 – PR (2018/0046908-1) – 3ª Turma – DJe de 13.03.2020. 

Sendo assim, a eventual cessão de crédito pretendido com fundamento em sentenças coletivas condenatórias genéricas, a rigor do art. 95, do Código de Defesa do Consumidor, as quais necessariamente devem passar pela fase da liquidação de sentença, deve acompanhar as mesmas orientações previstas na legislação material e processual vigente, bem como da interpretação conferida pelos Tribunais Superiores.  

Portanto, o estudo e a compreensão adequada do instituto da cessão de crédito tal como regulamentado pelo Código Civil e Código de Processo Civil compõem o melhor ponto de partida para a correta avaliação de um crédito ou direito cedido, bem como abarcaquais providências podem ser tomadas ao tomar conhecimento da operação para defesa dos interesses do devedor. 

Autores: Giovanna Hoff Domingues e Jean Felipe Alves Bezerra

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