A natureza jurídica dos depósitos judiciais

É corriqueira a existência de depósitos judiciais vinculados a processos em todas as esferas do Poder Judiciário para garantia do juízo. 

Em decorrência deles, é comum também que surjam questionamentos, cujas respostas dependem da definição da natureza jurídica do depósito judicial.  

Um desses questionamentos é a incidência- ou não- dos chamados expurgos inflacionários. Esses seriam decorrentes dos Planos Econômicos (Planos Bresser, Verão, Collor I e II) nos depósitos judiciais que foram efetuados antes da data da edição dos Planos e que tiveram seu levantamento em data posterior.  

Sabe-se que existem  duas correntes distintas quanto à natureza jurídica dos depósitos judiciais: a primeira sustenta que esses s tem todas as caraterísticas de um contrato de depósito de direito privado e seu regime jurídico é, portanto, de direito privado; a segunda sustenta que tais  depósitos judiciais são, na verdade, de natureza estatutária, tendo em vista que o banco depositário atua como auxiliar da justiça no processo judicial, se obrigando somente perante o Estado e, portanto, seu regime jurídico é de direito público.  

Por um lado, se considerarmos que os depósitos judiciais têm natureza contratual de direito privado, poderia ser admitida a discussão acerca de que os beneficiários teriam direito adquirido à aplicação dos índices de remuneração que contemplaria os expurgos inflacionários.  

Por outro lado, se concluído que os depósitos judiciais têm natureza estatutária de direito público, não existiria obrigação contratual alguma que impusesse a aplicação de um índice de remuneração diverso daquele que foi efetivamente aplicado pelos bancos depositários. Esta corrente apresenta maior sustentação. 

Diante disso, a relação que se estabelece, em decorrência de processo judicial, entre o depositário de dinheiro e o banco oficial, que assume o encargo de guardar o numerário, é de direito público tendo em vista a participação do Estado na relação.  

Aliás, o principal motivo pelo qual a legislação atribuiu preferência a estas instituições financeiras é exatamente o caráter oficial que as caracteriza para a realização da atividade de depositário judicial. 

Antes mesmo de receber o depósito, o banco depositário já tem uma relação de direito público com o Estado, que o obriga a receber os depósitos ( muitas vezes com exclusividade) por ordem do Poder Judiciário, impondo a ele um múnus público e durante todo o período em que cumpre o encargo do referido  banco depositário, o qual deve respeitar as condições definidas pelo Estado, pouco importando a vontade do depositante ou do beneficiário do depósito, que somente será definido ao final pelo juízo, que é o titular daquele depósito até então. 

A instituição financeira depositária deve dar estrito cumprimento às normas da Corregedoria Geral de Justiça e à legislação federal sobre a moeda e índices de correção monetária e inflação, em razão do múnus público que exerce. 

Uma vez inexistindo vínculo contratual entre a instituição financeira depositária e o depositante, não existe obrigação de adotar determinado critério de remuneração. Consequentemente, sendo esse liame a justificativa da responsabilidade dos bancos pelos chamados expurgos inflacionários, incidentes nos depósitos em caderneta de poupança, é impossível se falar em violação a um direito adquirido, pela simples razão de que ele nunca existiu, nem mesmo como expectativa de direito. 

A responsabilidade do depositário judicial, pelo exercício de seu múnus público, está prevista no artigo 161, do Código de Processo Civil, segundo o qual o depositário ou o administrador responde pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, causar à parte. 

Esse mesmo raciocínio se aplica ao depósito judicial em dinheiro, que, segundo os precisos termos do artigo 1.058, do Código de Processo Civil, deve ser depositado “em nome da parte ou do interessado, em conta especial movimentada por ordem do juiz”. 

Adotando essas premissas, é certo que não cabe à instituição financeira depositária, ou mesmo ao depositante, efetuar qualquer tipo de movimentação na conta judicial, ao passo que esta competência é de titularidade exclusiva do juízo. Isso justifica porque a discussão quanto ao pagamento correto à época da edição desses planos fica restrita, tão-somente, aos depósitos em cadernetas de poupança.  

O fundamento para condenar os Bancos no pagamento dos expurgos inflacionários nos depósitos de caderneta de poupança é que o contrato gerava para o depositante um direito adquirido a determinados índices, cuja supressão não poderia ser feita pelas leis novas.  

É certo que Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 179 a prescrever que “o estabelecimento de crédito que recebe dinheiro, em depósito judicial, responde pelo pagamento da correção monetária relativa aos valores recolhidos”, no entanto, ao analisar os precedentes que deram origem à Súmula, percebe-se que ela foi empregada de maneira errônea para condenar os bancos depositários ao pagamento dos expurgos inflacionários decorrentes dos Planos Econômicos. 

Os precedentes que deram origem a ela enunciam a responsabilidade da instituição financeira pelo pagamento da correção monetária, como depositária judicial, em função do dever de conservação (não de remuneração) que assume como auxiliar do juízo.  

O caso mais emblemático para entender o fundamento jurídico para a edição da Súmula nº 179 do STJ é o julgamento do RESP 39.8501. Nesse caso, o relatório esclarece que: 

[…] arrestada importância existente em conta corrente e em cotas de fundo de aplicação de determinada empresa, no Banco Bradesco S.A., ficou este, por seu gerente, como depositário judicial. Ao se proceder ao levantamento do depósito, considerou aquele que haveria de referir-se a importância arrestada, no montante inicial, não corrigido. A requerimento do credor, determinou o Juiz se entregasse o correspondente à correção, em 24h, pena de prisão. 

Como identificado pelo Min. Eduardo Ribeiro, a questão fundamental era saber se o depositário haveria de apenas manter valores na conta corrente ou se deveria tomar providências, tendentes a evitar que este valor se desvalorizasse, em razão da inflação. 

Caso se entendesse que o banco, mesmo após o arresto, permaneceria como depositário em função do contrato de conta corrente que mantinha com o consumidor, por óbvio não seria devida a correção monetária, pela natureza deste contrato bancário. No entanto, ocorre que o arresto ocorrido transmudou o depósito bancário (na qual se estabelece uma relação entre o banco e seu cliente) em depósito judicial (em que se configura uma relação entre o banco e o Estado).  

Em função disso, esclareceu o Min. Eduardo Ribeiro: 

Também ao depositário judicial aplica-se a regra do art. 1.266 do Código Civil, obrigando-se ‘a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence’. Nos tempos que correm até os mais inexperientes têm conhecimento dos riscos advindos da inflação, não ignorando que, permanecendo o dinheiro sem qualquer defesa, simplesmente depositado, seu valor tenderá para zero […]. Por certo que deixando as importâncias depositadas, sem qualquer aplicação, não age o banqueiro com os cuidados que se supõe tenha com as próprias coisas. 

A consideração é devida o pagamento de correção monetária ao depósito judicial o porquê não existir um suposto contrato entre a instituição financeira e as partes do processo ou o juiz, mas de uma relação estatutária de direito público que supõe ao depositário judicial o dever de guarda e conservação. 

Imputar a responsabilidade por eventual diferença dos rendimentos decorrentes dos Planos Econômicos nos depósitos judiciais, além de não haver respaldo legal para tanto, acarreta ônus às instituições financeiras depositárias e seus sucessores, porque acarreta aplicação de percentuais de passivos diversos daqueles do ativo dos bancos naquela época. 

Até o momento, não há notícia de um valor de passivo estimado para os processos que tramitam no Poder Judiciário que discutem expurgos inflacionários incidentes em depósitos judiciais.  

Para as ações que discutem expurgos inflacionários em cadernetas de poupança, que é um tipo de investimento de baixo risco e, consequentemente, de menor rendimento, foi estimado um passivo de R$ 150 bilhões2

Estima-se que o passivo para as ações que discutem expurgos inflacionários em depósitos judiciais deva ser consideravelmente maior, haja vista que as inúmeras desapropriações, execuções fiscais e ações de consignação em pagamento entre particulares, apenas a título de exemplo, exigem, incondicionalmente, depósitos judiciais, muitas vezes, de valores bastante elevados.

Conclusão  

Nesse contexto, de maneira sucinta, entende-se que inexiste vínculo contratual entre o banco depositário e o depositante e, dessa forma, , inexiste também direito adquirido a determinado critério de remuneração e o banco depositário, que está sujeito a cumprir as ordens emanadas do Estado, não tendo discricionariedade para agir de maneira diversa. 

Pela natureza de direito público, do depósito judicial, não cabe às instituições financeiras depositárias responder por eventuais expurgos inflacionários decorrentes dos planos econômicos editados entre os anos de 1987 e 1991.  

Em razão da controvérsia a respeito da incidência ou não dos expurgos inflacionários em depósitos judiciais, pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal o RE 1141156, com repercussão geral, cujo objeto do julgamento é “a questão referente aos índices de correção monetária aplicáveis aos depósitos judiciais” (Tema 1016/STF).  

Autores: Nathália Vigato Amado Cavalcante de Oliveira e Alexandra Pontes Tavares de Almeida 

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