A responsabilidade dos sócios de Sociedade Limitada atingidos pelo incidente de desconsideração da personalidade jurídica

O art. 1º do Código Civil prevê que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Isso quer dizer que os seres humanos são capazes de adquirir direitos e contrair obrigações. É válido lembrar que ser humano é um conceito biológico, ao passo que “pessoa” – para o direito – é aquela titular de direitos e deveres.i 

No entanto, estes agentes não são os únicos que praticam atos em sociedade. Em razão do inquestionável desenvolvimento da sociedade capitalista, o direito se viu obrigado a lidar com novas figuras jurídicas que não se amoldavam ao conceito de pessoa natural, mas que, igualmente, detinham personalidade jurídica.  

As variadas evoluções da vida civil, do seu meio social e industrial, exigiram a junção de ânimos entre os indivíduos com o objetivo de subsistir e realizar os mais diversos propósitos. Nesse movimento é que surge a pessoa jurídica, entendida como aquela que é dotada de personalidade jurídica própria.  Esta nasce com o registro do ato constitutivo e, a partir dele, a sociedade passa a ser titular da personalidade jurídica – independente das pessoas naturais –, e, consequentemente, adquire autonomia obrigacional e patrimonial.  

Ao que se refere ao aspecto obrigacional, a sociedade mantém relações jurídicas em nome próprio e de maneira independente dos seus sócios, sejam elas positivas (direitos, faculdades, créditos) ou negativas (dívidas, obrigações etc.). Por sua vez, em relação à autonomia patrimonial, verifica-se a obrigação de haver uma segregação entre os bens da pessoa jurídica e os bens dos seus sócios. É com a integralização do capital social da companhia que se consolida o nascimento da autonomia patrimonial da sociedade limitada. 

Maria Helena Diniz explica que as pessoas jurídicas constituem uma realidade autônoma, com direitos e obrigações, “independentemente dos membros que a compõem, com os quais não tem nenhum vínculo, agindo por si só, comprando, vendendo, alugando etc., sem qualquer ligação com a vontade individual das pessoas físicas que dela fazem parte. Realmente, seus componentes somente responderão por seus débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual. Essa limitação da responsabilidade ao patrimônio da pessoa jurídica é uma consequência lógica de sua personalidade jurídica, constituindo uma de suas maiores vantagens.”ii 

Isso porque, analisando-se sob a vertente econômica do direito, a segregação patrimonial tem o condão de gerar incentivo, pois é conferido ao agente a possibilidade de avaliar os riscos da sua escolha no fomento da atividade econômica, sendo certo que o seu patrimônio estará protegido, salvo hipóteses específicas. 

Ocorre que, se por um lado, a autonomia que passou a ser dada à pessoa jurídica decorreu e serviu para propiciar o desenvolvimento econômico, por outro lado, deu lugar a práticas nebulosas de indivíduos mal-intencionados que passaram a utilizá-la de maneira ilícita e fraudulenta para se furtarem do cumprimento de obrigações legais, ocasionando prejuízos a seus credores. Isso quer dizer que a pessoa jurídica passou a ser utilizada como um “manto protetor” para a prática de ilicitudes, por parte dos seus sócios e administradores, os quais permaneceriam com o patrimônio pessoal protegido. 

Com a recorrente utilização indevida da pessoa jurídica para obtenção de vantagens ilícitas, surgiu a necessidade de se delimitar o alcance da segregação patrimonial, calculando outros interesses e princípios do ordenamento jurídico, tais como a função social da empresa, o interesse público, a proteção ao credor, dentre outros. Foi então que surgiu, em meados do século XIX, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que foi chamada na common law de disregard of legal entity doctrine, ou também de disregard doctrine.  

Ainda que haja dúvidas quanto ao país de nascimento da teoria dentro dos países de common Lawiii, existindo parte da doutrina que alega ser estadunidenseiv, é inegável a importância da referida teoria para o desenvolvimento do instituto da desconsideração da referida personalidade, seja globalmente, seja nacionalmente. 

A teoria do Disregard, como bem explica Suzy Kouryv, defende que a separação patrimonial de sócios (pessoas físicas) e da sociedade (pessoa jurídica) seria protegida enquanto a operação empresarial exercesse as suas atividades com fins lícitos e em estrita obediência às normas vigentes. Assim, a proteção deixaria de existir quando constatada a ocorrência de práticas contrárias ao fim empresarial, tais como: fraudes contra credores e execuções, ilicitudes ou abuso de direito em suas operações, ou mero intuito de blindar o patrimônio dos sócios e administradores.  

No Brasil, é constitucionalmente assegurada a liberdade de “associação para fins lícitos”. Via de consequência, é vedado, por óbvio, a utilização das sociedades para práticas de ilícitos que afrontem a ordem jurídica, a moral e os bons costumes.  

O Código Civil de 1916 já sinalizava receio quanto à utilização indevida das pessoas jurídicas para práticas de ilícitos. É o que se extrai do art. 21vi, cuja redação previa que a existência da pessoa jurídica acabava quando incorresse em atos opostos aos seus fins ou nocivos ao bem público.  

Em 1990, o Código de Defesa do Consumidor, (Lei 8.078/90) adotou a desconsideração da personalidade jurídica em seu artigo 28, ao prever que, nas relações consumeristas, o juiz poderá decidir por desconsiderar a pessoa jurídica quando houver abuso de direito, excesso de poderes, violação à lei, má administração, entre outros casos. 

No direito ambiental, a preocupação quanto à utilização indevida da personalidade jurídica foi exposta no art. 4º da Lei 9.605/98, com a previsão de que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.” E o entendimento decorre da conjugação dos princípios da função social da empresa, livre exercício da atividade econômica e da defesa ambiental, nos termos do art. 170, incisos III e VIvii, da Constituição Federal.  

Em seguida, a Lei nº 9.847/99 – que dispõe acerca da fiscalização das atividades relativas ao abastecimento nacional de combustíveis – conferiu especial tratamento à desconsideração da personalidade jurídica no momento em que a sociedade for utilizada como óbice ao ressarcimento de prejuízos incidentes sobre o sistema de abastecimento ou ao sistema de estoques nacionais. 

Finalmente, em 2002, o novo Código Civil consagrou a desconsideração da personalidade jurídica na hipótese de abuso desta, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, conforme dicção exposta em seu artigo 50viii.  

Portanto, verifica-se uma preocupação entre os diferentes ramos do direito em garantir que, em determinadas situações, o manto da proteção conferido pela sociedade pode não ser aplicável, situação em que se discute qual seria a extensão da responsabilidade dos sócios. 

A desconsideração da personalidade jurídica foi pensada, então, como o meio hábil a preservar a autonomia empresarial e o desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que se impõe limites à sua proteção, de modo que não pode ser utilizada como um manto para prática de ilícitos por parte de seus sócios e administradores. 

Considerações gerais acerca do incidente de desconsideração da personalidade jurídica

O ordenamento jurídico brasileiro tem como premissa estruturante do sistema de responsabilização o princípio da autonomia patrimonial, o qual prevê que o patrimônio dos sócios não se confunde com o patrimônio da sociedade empresarial.  

A Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) reforçou a importância da distinção entre o patrimônio empresarial daquele patrimônio constituído pelas pessoas físicas dos sócios como instrumento hábil e importante para estimular a livre iniciativa e o desenvolvimento econômico. 

Todavia, na hipótese de ser constatado o abuso da personalidade jurídica, há a possibilidade de flexibilização desta autonomia por intermédio do Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica. A desconsideração da personalidade jurídica, como visto, teve influência do direito europeu e norte-americano e tem como objetivo responsabilizar pessoalmente os sócios, com seus patrimônios pessoais, por dívidas originariamente contraídas pelas sociedades, quando estas não honrarem suas obrigações.  

A proteção à personalidade jurídica e à segregação dos patrimônios não pode – e não deve – ser admitida como meio para prática de fraudes decorrentes do abuso de direito praticado pelos sócios. Isso quer dizer que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem como objetivo repreender a prática de ilícitos e impossibilitar que a função econômica e social da empresa seja desvirtuada para fraudar credores e execuções.  

Se por um lado a proteção à personalidade jurídica foi pensada como o meio hábil a estimular o desenvolvimento econômico, por outro não se pode ignorar os efeitos de tal proteção, a fim de obstar que a empresa possa ser utilizada indevidamente como blindagem patrimonial em detrimento do cumprimento de obrigações legais, sob pena de subverter-se o próprio desenvolvimento econômico.   

Também é importante se ter em mente que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica – caso deferido – tem como objetivo prático possibilitar que os sócios respondam, com seu patrimônio próprio, por dívidas e obrigações da empresa naquele caso específico. Não há, por óbvio, uma extinção da personalidade jurídica, mas tão somente uma suspensão temporária da proteção da distinção patrimonial que é conferida às sociedades empresárias.  

Conclui-se, então, que a desconsideração da personalidade jurídica não enseja o desfazimento do princípio da separação patrimonial e não licencia um amplo e indiscriminado acesso à comunidade societária, mas pressupõe a definição fundamentada de quem é o responsável pelo mau uso ou abuso da personalidade jurídica. 

Marlon Tomazette leciona que a desconsideração da personalidade jurídica constitui na “retirada episódica, momentânea e excepcional da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a fim de estender os efeitos de suas obrigações à pessoa de seus sócios ou administradores, com o fim de coibir o desvio da função da pessoa jurídica, perpetrado por estes.”ix 

Dada a relevância e a importância do tema, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica está prevista em diversas leis atualmente, dentre elas o Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei 8078/90, artigo 28), na Lei 9.847/99 (artigo 18, § 3°), na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (artigo 2°, § 2°) , na Lei de Defesa Econômica (Lei 8.884/94, artigo 18), na Lei do Meio Ambiente (Lei 9.605/98, artigo 4°), no Código Tributário Nacional – CTN e no artigo 50 do Código Civil. 

Isso significa dizer que, diante de diferentes previsões do ordenamento jurídico a respeito do tema, os requisitos para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica dependerão da natureza da relação jurídica estabelecida entre as partes, o que divide o instituto em duas teorias: a Teoria maior e a Teoria menor.

Teoria Menor – Flexibilização dos requisitos previstos no código civil

Para a Teoria Menor – adotada, por exemplo, nos ramos do Direito Ambiental e do Consumidor –, a desconsideração da personalidade jurídica deve ocorrer sempre que a empresa não cumprir com a sua obrigação sob alegação de insuficiência de bens. Nesse âmbito, não se faz necessária a comprovação de abuso da personalidade jurídica, má-fé ou qualquer irregularidade por parte dos seus sócios, mas, tão somente, a impossibilidade de satisfação da obrigação por parte da pessoa jurídica.  

O Código de Defesa do Consumidor traz a ideia da Teoria Menor, em seu art. 28, parágrafo 5º, ao dispor que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que a sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores” 

Por sua vez, a Lei do Meio Ambiente (Lei 9.605/98) prevê a desconsideração da personalidade jurídica quando os sócios pratiquem atos lesivos ao meio ambiente e constituam uma nova empresa para fugir da sua responsabilidade legal. 

Fábio Ulhôa defende que “de acordo com a teoria menor da desconsideração, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela. A formulação menor não se preocupa em distinguir a utilização fraudulenta da regular do instituto, nem indaga se houve ou não abuso de forma”.x 

E nesse mesmo sentido, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que dispõe que a “Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica é mais ampla e mais benéfica ao consumidor, não se exigindo prova da fraude ou do abuso de direito. Tampouco é necessária a prova da confusão patrimonial, bastando que o consumidor demonstre o estado de insolvência do fornecedor ou o fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causadosxi. 

Ou seja, a dita Teoria Menor se baseia, em suma, na ideia do risco da atividade empresarial que deve ser suportado por aqueles que auferem lucros em prol da parte hipossuficiente da relação jurídica. 

Neste ponto, é importante dizer que há até mesmo um debate doutrinário no sentido de que, em verdade, os requisitos da Teoria menor não dizem respeito à desconsideração da personalidade jurídica, mas, se referem às hipóteses em que a responsabilidade dos sócios é ordinária e subsidiária.  

Essa corrente defende que, em relações consumeristas e ambientais, a responsabilidade dos sócios não decorre de abuso da personalidade jurídica, mas de responsabilidade ordinária pelas obrigações estipuladas, independentemente do seu comportamento no exercício empresarial. Ou seja, é uma responsabilidade ordinária que decorre de lei e não possui qualquer relação com o mau uso da personalidade jurídica, de modo que a obrigação transpassa ao patrimônio pessoal do sócio sempre que a empresa não tiver condições de solvênciaxii.

Teoria Maior – Aplicação dos requisitos no código civil

Para a Teoria Maior, o princípio da autonomia patrimonial deve ser preservado sempre que possível, de modo que o seu afastamento se dá apenas em casos excepcionais.  

A possibilidade de se mitigar o princípio da autonomia patrimonial se dá por intermédio do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, previsto no art. 50 do Código Civil – este já citado -, e exige a comprovação objetiva dos requisitos para configuração do abuso da personalidade jurídica: confusão patrimonial e desvio de finalidade entre os sócios e as pessoas jurídicas. E tais requisitos são necessários e importantes para que não haja uma banalização do instituto e, consequentemente, um enfraquecimento da autonomia patrimonial e de todos os seus efeitos no desenvolvimento econômico.  

A Teoria Maior foi recepcionada pelo Superior Tribunal de Justiça. A título exemplificativo, o entendimento foi exposto no julgamento do Recurso Especial 279.273/SPxiii

“a teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).” 

A confusão patrimonial caracteriza-se pela ausência de separação entre os patrimônios da pessoa jurídica e das pessoas físicas dos sócios, especialmente quando há  

(i) “cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa”; 

 (ii) “transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante” e 

 (iii) outros atos de descumprimento da autonomia patrimonialxiv

O desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.xv 

E é esta teoria que importa ao estudo do presente artigo. 

A responsabilidade dos sócios após a desconsideração da personalidade jurídica: Limitada ou Solidária?

Ultrapassada a análise das condições e requisitos aptos a ensejar a desconsideração da personalidade jurídica, deve ser questionado se todos os sócios serão atingidos e, também, os limites da responsabilização de cada um. A obrigação passa a ser solidária, ou deve ficar restrita aos limites do ato fraudulento comprovadamente praticado por determinado sócio? 

Ao deferir a desconsideração da pessoa jurídica, cabe ao Poder Judiciário definir e delimitar, fundamentadamente, quais são as obrigações atingidas pelo incidente e a quais dos sócios serão estendidos os seus efeitos.  

A inteligência do art. 50 do Código Civil – dispositivo que regula a desconsideração da personalidade jurídica – prevê que é necessária a comprovação do abuso da personalidade jurídica, consubstanciado na prática de confusão patrimonial e/ou desvio de finalidade por parte dos administradores e sócios. Tem-se, portanto, que são requisitos atribuídos àqueles que têm poder de administração e gestão da sociedade empresária, cujas competências são expressamente reguladas pelo próprio Código Civilxvi

Nessa linha de raciocínio, a priori, apenas aqueles que possuem os poderes de administração da empresa é que estariam suscetíveis às práticas fraudulentas no exercício da atividade empresarial e, logo, poderiam ser responsabilizados pessoalmente por desvio de finalidade/ou confusão patrimonial.  

Contudo, a questão parece não estar suficientemente pacificada na jurisprudência.  

No julgamento do Recurso Especial 1.315.110/SExvii, o STJ estendeu a desconsideração da personalidade jurídica a um dos sócios que, pelo contrato social, não exercia a administração da sociedade. Para tanto, consignou-se, expressamente, a importância de se examinar as circunstâncias fáticas e a natureza jurídica específica da sociedade que se encontra em litígio.  

Já no julgamento do Recurso Especial 1.250.582/MGxviii, o STJ estendeu a desconsideração da personalidade jurídica a um dos sócios que não exercia a administração ou poder de gestão, mas que tinha pleno conhecimento do desvio de finalidade perpetrado pela sociedade empresária e se beneficiou dos atos fraudulentos. Consoante se depreende do voto, o posicionamento externalizado pelo STJ foi além: entendeu-se que não há diferenciação dos sócios e todos respondem indistintamente pela obrigação da empresa. A saber:  

“Ocorrendo abuso da personalidade jurídica, determina-se sua desconsideração para, dessa forma, alcançar o patrimônio dos sócios que, por via transversa, gerou prejuízos a terceiros. Contudo, nesse processo de desconsideração não se realiza a ponderação de quem ocasionou o dano, sendo irrelevante determinar se a conduta foi praticada por meio dos atos dos gerentes e administradores ou de outro sócio específico. Todos aqui responderão pelo ato danoso. 

Nessa toada, não pode o sócio minoritário, para se eximir dessa responsabilidade, alegar desconhecimento dos fatos abusivos praticados pela empresa. Mesmo tendo pequena parcela de quotas, é dever de cada sócio gerir as atividades e os negócios realizados pela sociedade” 

Há, portanto, uma linha de entendimento de que, constatado o abuso da personalidade jurídica, consubstanciado na prática de atos fraudulentos na condução da atividade empresarial, todos os sócios passam a ter responsabilidade solidária, de modo que a sociedade não responderá de maneira isolada pelas obrigações. 

Dessa forma, a sociedade por quotas de responsabilidade limitada tem a responsabilidade dos sócios reduzida ao valor de suas quotas, respondendo todos solidariamente pela integralização do capital, mas só por isso, conforme determina o 1.052 do Código Civil.  

A previsão estampada no mencionado dispositivo legal diz respeito às circunstâncias nas quais o patrimônio da pessoa jurídica é insuficiente para o cumprimento de obrigações sociais assumidas, em razão da não integralização do capital social. Aí que se tem a responsabilização solidária de todos os sócios, mesmo aqueles que já integralizaram o capital social equivalente à sua participação societária, para o cumprimento das obrigações da pessoa jurídica.  

A esse respeito, Sueli Baptista de Sousaxix explica: 

Como se depreende da leitura do art. 1.052, in fine, do Código Civil, a responsabilidade dos sócios na sociedade limitada é solidária pelo capital social subscrito e não integralizado. Assim, “A”, “B” e “C” constituem uma sociedade e cada qual subscreve o mesmo valor de R$ 30.000,00. Se algum deles não integralizar a quota subscrita ou integralizá-la parcialmente, na hipótese de insuficiência patrimonial da sociedade perante as obrigações assumidas com terceiros, todos os sócios responderão solidariamente pelo pagamento da importância que faltar para a completa integralização do capital social.   

Todavia, a solidariedade que se extrai da dicção do art. 1.052 do Código Civil não poderá ser confundida com o instituto da desconsideração da personalidade jurídica. 

Com as devidas vênias, é necessário cautela ao se entender pela responsabilização irrestrita de todos aqueles que compõem o quadro societário, independentemente da comprovação de abuso da personalidade e desvio de finalidade social, sob pena de caminhar para uma descaracterização do instituto da responsabilidade limitada.  E não apenas o instituto desta seria questionado, mas também, e principalmente, a dicção do art. 50 do Código Civil.  

A questão deve ser avaliada sob a ótica e realidade do Direito Empresarial brasileiro. Até o momento, não há regulamentação hábil a justificar a quebra do princípio da autonomia patrimonial e a sua extensão àqueles que detém mínima participação societária com fundamento exclusivo no dever dos sócios de regular os atos societários e as atividades empresariais, sem que seja configurado o abuso da personalidade jurídica.   

A lei garante àqueles que se associam em uma sociedade limitada, que não teriam responsabilidade subsidiária pelas obrigações assumidas – e não satisfeitas – pela pessoa jurídica. Não há previsão normativa para que o referido incidente seja utilizado como um atalho para que se afirme a responsabilidade civil pelo simples investimento em uma sociedade empresáriaxx. Caso a intenção do legislador fosse imputar uma responsabilidade solidária decorrente da desconsideração da personalidade jurídica, a previsão deveria estampar o artigo do Código Civil. Partindo-se, inclusive, do princípio basilar que rege a hermenêutica jurídica de que a lei não contém palavras inúteis, a omissão legislativa em prever responsabilidade solidária significa uma escolha do legislador, ainda que iuris tantum, em que as circunstâncias fáticas podem permitir a extensão da responsabilidade. 

Não à toa, cabe relembrar que a jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça tem caminhado para o entendimento de que todos os sócios podem ser atingidos pela desconsideração da personalidade jurídica, desde que comprovado o mau uso e a prática de ilícitos na condução da atividade empresarial. Assim sendo, “os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica somente alcançam os sócios participantes da conduta ilícita ou que dela se beneficiaram ainda que se trate de sócio majoritário ou controlador”, uma vez que “a teoria da desconsideração da personalidade não é instituto que impõe a solidariedade do sócio em relação à sociedade, tampouco o responsabiliza de forma objetiva por atos ilícitos.”xxi 

Portanto, ainda que se trate de sócio minoritário e sem poder de gestão, especialmente, deve ser comprovada (a) a confusão patrimonial, quando não houve a devida separação entre o patrimônio da sociedade empresária do patrimônio do referido sócio e (b) a conivência do sócio minoritário com relação aos atos fraudulentos, bem como que deles se beneficiou.  

Deste modo, mister se faz a análise subjetiva da participação efetiva do sócio no exercício da atividade empresarial, a fim de se delimitar a responsabilidade de cada um e evitar que um sócio sem poder de representação ou que detenha inexpressiva participação econômica na empresa possa ser responsabilizado pelo ato fraudulento praticado sob a suposta “autonomia patrimonial da empresa” por aqueles que, verdadeiramente, conduzem a atividade empresarial.  E, de igual modo, penalizar àqueles sócios minoritários, com poderes inexpressivos ou inexistentes de gestão, mas que tenham conhecimento e sejam coniventes com a prática dos atos ilícitos.  

Assim, embora não se esteja diante de um cenário de mera responsabilidade civil, há de se ter inequívoca demonstração de nexo de causalidade entre a conduta ou a omissão do agente e o dano causado. Portanto, há necessidade de se tipificar a conduta do sócio a ser atingido pela desconsideração da personalidade jurídica com aquele ato que configure o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. É que os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica só poderão incidir sobre os sócios e administradores que efetivamente praticarem abuso ou fraude na utilização da pessoa jurídica e não indiscriminadamente contra qualquer sócio. 

Entendimento contrário subverteria os fundamentos do próprio instituto, uma vez que responsabilizaria alguém não pelo que fez, mas simplesmente – e injustamente – por ter investido no empreendimento empresarial confiando na definição de um limite de responsabilidade. 

Do ponto de vista teórico, a desconsideração não é propriamente uma regra de responsabilidade civil, mas uma técnica pela qual se permite definir quem está diretamente vinculado a certa obrigação. Na desconsideração, importa mais saber quem se beneficiou do abuso da personalidade do que saber quem o praticou com culpa. 

A objetividade do art. 50 do Código Civil, em especial ao dar primazia aos bens particulares dos “administradores”, para, depois, fazer referência aos sócios da pessoa jurídica, reside na inclusão do patrimônio particular daqueles que, de alguma forma, tiveram participação ou auferiram alguma vantagem com a prática do abuso da personalidade jurídica, sem qualquer relação ao percentual de sua participação societária. Quis o legislador, aqui, nitidamente, limitar a hipótese de responsabilidade objetiva do sócio que não contribuiu, de qualquer modo, para o abuso na personalidade jurídica da empresa. 

No mesmo sentido, foi a conclusão adotada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, na 7ª Jornada de Direito Civil: só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido“. 

Essas considerações levam ao entendimento de que o sócio atingido deve ser responsabilizado de maneira limitada ao ato fraudulento efetivamente comprovado. 

Se a demonstração de abuso da personalidade jurídica é requisito para a desconsideração desta, parece razoável que a responsabilidade do sócio atingido seja restrita e limitada ao ato fraudulento praticado. Isso se justifica, também, na previsão do art. 265 do Código Civil, o qual dispõe que a solidariedade não pode ser presumida e resulta de lei ou da vontade das partes envolvidas. E se torna ainda mais relevante quando se está diante de uma sociedade limitada, na qual os sócios devem ser responsabilizados na proporção das suas quotas. 

Entender de forma diversa poderia desvirtuar ponto crucial das sociedades limitadas, além de impactar a livre iniciativa e o desenvolvimento econômico.  

Conclusão.

Pelas considerações expostas, verificou-se que a desconsideração da personalidade jurídica é um incidente de extrema importância para a manutenção da autonomia patrimonial das sociedades e para se coibir fraudes no exercício da atividade empresarial que possam ocasionar prejuízo a terceiros, especialmente em razão do crescente números de mal-intencionados que veem a pessoa jurídica como um manto para prática de ilicitudes.  

Os requisitos autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica foram expressamente definidos pelo art. 50 do Código Civil e exigem a comprovação de atos que importem em abuso da personalidade jurídica, dentre eles a confusão patrimonial e o desvio da finalidade. Também foi exposto que, em regra, os referidos atos são praticados pelos administradores e sócios majoritários com poderes de gestão, mas que podem, a depender do caso concreto, ser estendidos aos sócios minoritários que sejam coniventes com a prática dos atos fraudulentos e que deles se beneficiam.  

Não se discute a importância da desconsideração da personalidade jurídica para salvaguardar os direitos dos credores. Todavia, a análise da responsabilidade empresarial do sócio minoritário que possui inexpressiva participação societária e que não detém poder de gestão da empresa deve ser feita sob um prisma econômico e com estrita observância dos requisitos legais previstos no art. 50 do Código Civil, sob pena de desvirtuar premissa essencial da responsabilidade limitada e da segregação patrimonial.  

Isso quer dizer que é imprescindível uma análise cautelosa dos tipos de sócios existentes em cada sociedade e de como se dá o funcionamento e as tomadas de decisões da empresa, a fim de se identificar quais são os reais detentores de poder de gestão e administração, bem como quais são os sócios beneficiados com as ilicitudes eventualmente praticadas na atividade empresarial. Caso contrário, a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica poderá ensejar o fim da responsabilidade limitada no Brasil o que, fatalmente, traz imensuráveis prejuízos ao desenvolvimento econômico.  

Em qualquer hipótese de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica e independentemente do limite de responsabilização de cada sócio atingido, o instrumento tem o condão de afastar, de modo temporário, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, não se tratando de hipótese de anulação ou desconstituição da personalidade jurídica.  

Autora: Thaíse Affonso Dias

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