A suspensão da exigibilidade do crédito oriundo de multa administrativa, o artigo 300 do Código de Processo Civil e o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)

Sabe-se que, nos termos do que prevê o Código Tributário Nacional1, o poder de polícia consiste em atividade típica da administração pública, possuindo, dentre outras finalidades, regular a prática ou abstenção de ato em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e disciplina do mercado. 

Consequência lógica de tal missão é que se estabeleça o poder de polícia administrativo relativo à regulação das relações de consumo às sanções administrativas previstas no mencionado dispositivo legal.  

Dentre as penalidades elencadas, há a multa, que tanto pode ser aplicada sem prejuízo das sanções de natureza civil, penal e daquelas definidas em normas específicas, quanto sanção de encontradiça utilização pelos Procons dos Municípios, pelo que também não é de incomum impugnação judicial. 

Neste sentido, é de ciência que decisão emanada de ente pertencente à administração pode ser revista judicialmente, a depender de seu conteúdo e vinculação, conforme decidiu a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça no AREsp nº 1.806.617.  À época, estabeleceu-se que a discricionariedade administrativa não é imune ao controle judicial, de forma que cabe ao Poder Judiciário reapreciar os aspectos vinculados do ato administrativo (competência, forma e finalidade, além da razoabilidade e da proporcionalidade). 

Assim, as multas sancionatórias estabelecidas pelos mencionados órgãos pertencentes ao sistema de proteção do consumidor são, em geral, objeto de questionamento por meio de ações anulatórias, de modo que o ato administrativo seja objeto de revisão judicial. 

No bojo de tais demandas judiciais, é de praxe que se insira, a título de requerimento liminar, pedido que vise à  suspensão da exigibilidade da multa aplicada na hipótese, de modo que seja viabilizado o debate judicial acerca da legalidade do ato administrativo antes que o montante seja objeto de execução fiscal, já que a cobrança do débito que deriva da multa em questão(  em que pese possua natureza não-tributária) submete-se ao rito previsto na Lei de Execução Fiscal (Lei Federal nº 6.830/1980). 

É neste cenário que surge o debate acerca dos requisitos para que seja proferida decisão que suspende a exigibilidade do crédito não-tributário em análise.  

Há, atualmente, entendimento sólido assentado pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, em que pese a submissão ao rito estipulado para o crédito fiscal, a multa administrativa não atrai a incidência do quanto previsto no artigo 151, inciso II, do Código Tributário Nacional.  

Portanto, a suspensão da exigibilidade de multa aplicada pelo Procon não fica irremediavelmente condicionada ao depósito integral e em dinheiro do valor da penalidade.  

Dessa forma, não há – ou ao menos não deveria haver – dúvidas acerca da possibilidade de oferecimento de outra garantia idônea prevista em lei, conforme entendimento que se extrai do julgamento do REsp 1.381.254-PR em 25/06/2019, no sentido de que é cabível a suspensão da exigibilidade do crédito não tributário a partir da apresentação da fiança bancária ou do seguro garantia judicial, desde que em valor não inferior ao do débito constante da inicial, acrescido de trinta por cento. 

Assim, a posição constante da Súmula 112 do STJ de que o depósito somente suspende a exigibilidade do crédito tributário se for integral e em dinheiro, reproduzida no julgamento do Recurso Representativo da Controvérsia nos autos do REsp 1.156.668/DF, não se estende aos créditos não tributários originários de multa administrativa imposta no exercício do Poder de Polícia. 

A questão que remanesce é se a garantia, quando efetivamente idônea, seria suficiente para a concessão de uma automática suspensão da exigibilidade, de modo que a decisão liminar favorável seria mera consequência do ato de se apresentar garantia suficiente na forma da lei e da jurisprudência.  Embora importante porção de decisões seja permeada por tal entendimento, há ainda relevante defesa de que a suspensão da exigibilidade demandaria mais do que a apresentação de garantia, no sentido de que para a concessão de tal pleito sejam preenchidos os requisitos do artigo 300 do Código de Processo Civil. 

Neste sentido, mais do que simplesmente a apresentação de garantia, a concessão da suspensão em cada caso demandaria que a tutela de urgência somente ser concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.  

A suspensão da exigibilidade do crédito não-tributário em razão de requerimento liminar não é tema novo para o Superior Tribunal de Justiça, conforme se verifica do Informativo nº 652 de 16 de agosto de 2019. A publicação em questão tratou especialmente do REsp 1.381.254-PR, de relatório do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, por unanimidade julgado em 25/06/2019 e publicado no DJe 28/06/2019. 

Analisando-se a íntegra do mencionado acórdão, cujo entendimento acerca do cabimento das garantias ali estipuladas é ainda observado, vê-se que não há menção de que haveria uma obrigação de cumprimento de requisitos cumulativos, ou seja, dever-se-ia, para além e antes de garantir o juízo, ser demonstrada a presença no caso em análise dos requisitos do artigo 300 do CPC. 

Além de tal paradigmático julgado do STJ, outros adotam a mesma linha de intelecção e estabelecem a viabilidade da suspensão do crédito não-tributário quando da apresentação de garantia considerada suficiente pela lei e jurisprudência. 

Em que pese o quanto lançado em tais entendimentos, ainda há a defesa no sentido de que deve ser apresentado no caso a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. São numerosas as decisões neste sentido emanadas dos Tribunais pátrios. 

Não há no ordenamento jurídico positivado, conforme reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento do REsp 1.381.254, , regulamentação normativa acerca de tal tratativa em relação ao crédito não-tributário. 

Neste sentido, com a devida licença no que toca à defesa de posicionamento diverso, parece-nos que, a exemplo do que se estabeleceu para resolução do Recurso Especial acima citado, a situação aqui também se resolve mediante as técnicas de integração normativa e de correção do sistema, previstas no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).  

Assim, a toda evidência se trata de questão de direito que demanda a correta e integral aplicação da analogia, que, se aplicada nos moldes para os quais se destina, tornará sanada a lacuna e tornará prático o sistema de normas incidentes à espécie.  

Assim, devemos analisar as hipóteses de suspensão do crédito quando efetivamente tributário previstas no artigo 151 do Código Tributário Nacional.  

Dentre as situações que culminam na suspensão em questão, cumpre destacar aquela prevista no inciso II e a que se encontra estabelecida por força do inciso V. 

Trata-se, portanto, de situações diversas, já que o inciso II prevê a suspensão por força do depósito integral do valor do crédito (que, como visto, no caso de crédito não-tributário, pode ser substituído pelo seguro-garantia e pela carta-fiança), enquanto o inciso V prevê justamente a possibilidade de suspensão em caso de deferimento de liminar em ação judicial. 

Portanto, parece claro que, da interpretação pela sistemática acertada a incidir in casu, a conclusão de que a apresentação de garantia idônea em demandas de natureza tal como a que aqui se trata é elemento capaz, por si só, de conduzir à suspensão do débito não-tributário. 

Lado outro, o que estabelece o inciso V é a possibilidade de suspensão do crédito (na hipótese expressa da lei, tributário, e no caso decorrente da analogia, o crédito não-tributário) mediante decisão judicial, na qual, diga-se de passagem, o juiz poderá exigir a título de contracautela, a apresentação de garantia.  

Portanto, as possibilidades de suspensão do crédito se mostram, na realidade, independentes e isoladas, de modo que não há que se falar em necessidade de apresentação dos requisitos do artigo 300 do Código de Processo Civil e de garantia. 

O expediente que se tornou comum na praxe forense no sentido que se defira a tutela ab initio pretendida e se condicione a sua eficácia à apresentação de garantia não traduz previsão legal. A providência do magistrado em tais situações equivale exatamente à contracautela. 

Dessa forma, conclui-se que o mais indicado seja que os Tribunais, inclusive em atendimento ao que determina o artigo 926 do Código de Processo Civil2, apliquem na integralidade a exegese em questão. Tal ação já nos parece  capitaneada pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que teria a garantia o condão de, de per si, suspender a exigibilidade do crédito não-tributário quando de sua apresentação nos autos de ação anulatória de multa imposta pelo Procon. 

Autora: Ana Gabriela Malheiros de Oliveira

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