Conselho Nacional de Justiça (CNJ) torna obrigatória adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero  

Em 2/2/2021 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Portaria nº 27/2021, instituiu grupo de pesquisa para o estudo da implementação das políticas nacionais estabelecidas nas resoluções CNJ nº 254/2020 e 255/2020, que discutem, respectivamente, o enfrentamento à violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e o Incentivo à Participação Institucional Feminina neste. . 

A partir dos estudos realizados por este grupo de trabalho, foi estabelecido o “Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero”, que tem como escopo servir de manual aos magistrados para que os julgamentos de casos concretos sejam realizados sob a ótica de gênero, visando a não-discriminação e à efetivação do direito a uma igualdade substantiva:  

(…) de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos. 

Referido documento é dividido em três partes: (i) conceitos, em que  são expostos os parâmetros relevantes para o julgamento com perspectiva de gênero, (ii) guia para magistradas e magistrados: um passo a passo, em que  são sugeridas etapas a serem utilizadas por magistrados e magistradas para auxiliá-los no momento da decisão, e por último, (iii) questões de gênero específicas dos ramos da justiça, em que são apresentadas algumas peculiaridades de cada ramo da Justiça, abordando certas problemáticas enfrentadas no cotidiano, as quais  servem como exemplo de tratamento e dão luz em como o gênero impacta nas mais variadas relações.  

Conceitos trazidos pelo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 

Para melhor compreensão do tema, o Protocolo do CNJ explicita os conceitos básicos mais relevantes ao Julgamento com Perspectiva de Gênero, sendo eles: sexo, gênero, sexualidade e identidade de gênero:  

  1. Sexo: se refere às características biológicas que classificam os indivíduos entre machos, fêmeas e intersexuais;  
  1. Gênero: conjunto de características mutáveis, para além das biológicas, atribuídas socialmente aos diferentes sexos.  
  1. Identidade de gênero: identificação pessoal com o conjunto de características socialmente construídas e atribuídas a um determinado gênero, por vezes distinta do sexo biológico do indivíduo.  
  1. Sexualidade: refere-se à atração e à prática sexual e afetiva dos indivíduos.  

Com isso em mente, quando o referido protocolo aborda a desigualdade de gênero, é importante frisar que o enfoque está na existência de hierarquias estruturais sociais que moldam aspectos das relações.  

Pelo viés interseccional, segundo o protocolo, as experiências de opressão por gênero não se operam de forma única, mas dialogam com diversos outros marcadores sociais (classe, etnia, idade, sexualidade etc.), o que sugere que mais de um sistema de opressão pode ser vivenciado por uma mesma pessoa, criando diferentes níveis de desigualdade social. Por este motivo, quando o protocolo (p. 24) utiliza o termo “patriarcado”, deve ser entendido como parte de “sistemas de opressão interligados, que operam de maneira integrada nas inúmeras expressões de desigualdade”.  

Consequentemente, a conclusão que parece sobressair no referido protocolo é de que existe um sistema social que, utilizando-se de estereótipos de gênero, afeta as mulheres de forma desproporcional, além de poder propagar discriminações e violências sistêmicas quando atravessa a atividade jurisdicional, mesmo que de forma inconsciente.   

O protocolo traz uma lista não exaustiva de diversos exemplos de como os estereótipos podem influenciar a apreciação de um determinado fato para julgamento como, por exemplo, quando uma julgadora ou um julgador “confere ou minimiza relevância a certas provas com base em uma ideia preconcebida sobre gênero”, “considera apenas as evidências que confirmam uma ideia estereotipada, ignorando aquelas que a contradizem”, dentre outros.  

Nesse contexto, foi destacada a necessidade de que as magistradas e os magistrados tenham, primeiramente, conhecimento da existência de estereótipos; depois, que tenham capacidade para identificá-los no caso concreto bem como reflexão sobre possíveis prejuízos. Por fim, que tenham consciência para integrar essas considerações na atuação jurisdicional.  

Em vista disso, o protocolo traz algumas questões e sugestões a serem consideradas quando falamos de certos conceitos que são pilares do direito e do Estado Democrático de Direito, mas que, tendo em vista a desigualdade estrutural existente, podem servir de empecilhos quando utilizados de maneira abstrata. 

Como, por exemplo, o conceito de imparcialidade, que classicamente se caracteriza na “ausência de interesse egoístico e pessoal de quem julga como a garantia de uma decisão justa”. Atualmente, esta ideia se expande para relacionar a atividade jurisdicional ao chamado “devido processo legal substancial”, de modo que 

[…] a imparcialidade deixa de tratar apenas de questões referentes à subjetividade de quem julga, para abranger a própria persecução de um processo justo, sob o ponto de vista do procedimento. 

Apesar dessa pretensão à objetividade – local onde as decisões seriam tomadas independente de interesses pessoais, em busca da verdade e da justiça – o protocolo se fundamenta no entendimento de que a sociedade brasileira é estruturalmente desigual, permeada de desvantagens sistêmicas quanto aos papéis, aos ideais e às visões atribuídas aos gêneros.  

Assim, o protocolo alerta que esses preconceitos e estereótipos também existem quando da aplicação concreta do direito, que foi idealizado tendo em mente o que o documento chama de “sujeito jurídico universal e abstrato”, ou seja, o “homem branco, heterossexual, adultos e de posses”, omitindo as diferenças de gênero, de raça e de classe, que influenciam a prestação jurisdicional: 

É dizer, a desconsideração das diferenças econômicas, culturais, sociais e de gênero das partes na relação jurídica processual reforça uma postura formalista e uma compreensão limitada e distante da realidade social, privilegiando o exercício do poder dominante em detrimento da justiça substantiva. 

Conforme destacado no protocolo, esse viés resulta numa aplicação desigual do direito, pois quem está incumbido de decidir é, mesmo que inconscientemente, influenciado por essa realidade e, portanto, inclinado a reproduzir os discursos que perpetuam essas desigualdades, conforme destacado no trecho abaixo:  

Um julgamento imparcial pressupõe, assim, uma postura ativa de desconstrução e superação dos vieses e uma busca por decisões que levem em conta as diferenças e desigualdades históricas, fundamental para eliminar todas as formas de discriminação contra a mulher 

O que o protocolo sugere é que os magistrados estejam constantemente atentos aos preconceitos que lhes são inerentes, a fim de criar uma constante vigilância sobre os seus julgamentos, almejando, assim, uma visão crítica dos fatos e da realidade das partes, de modo a confirmar os princípios constitucionais da igualdade e da não discriminação. 

O texto destaca, ainda, outro problema, relacionado ao fato de que as leis, inclusive aquelas de cunho protetivo, foram elaboradas, em sua maioria, sem a participação e contribuição ativa dos grupos que mais seriam afetados por suas disposições:  

Mulheres e outros grupos subordinados – a exemplo de povos e comunidades tradicionais, quilombolas e ribeirinhas; pessoas negras em geral – foram (e ainda são) historicamente excluídos da esfera política, o que impediu que suas experiências fossem levadas em consideração quando da conceitualização de danos juridicamente relevantes e da propositura de soluções jurídicas (ou políticas públicas) para saná-los. 

A sugestão do protocolo para contornar as anomalias que o fenômeno pode gerar é de que se reflita e se aplique o direito “de maneira contextualizada e atenta a como questões problemáticas operam na vida real.”  

Para além disso, o protocolo dedica especial atenção ao princípio da igualdade. Entende-se que a igualdade de tratamento (“tratar iguais de maneira igual e desiguais de maneira desigual”), apesar de ser a interpretação mais tradicional desse princípio, não é suficiente para lidar com as desigualdades resultantes das concepções sociais, políticas e culturais. 

Especialmente no que diz respeito aos estereótipos que estimulam noções de subordinação e de superioridade dos homens em relação às mulheres, emerge, no texto do protocolo, o chamado princípio de igualdade substantiva, ou princípio antisubordinatório, que pode auxiliar os magistrados em seus julgamentos de duas formas:  

  1. Como “lente” para identificar as desigualdades estruturais que podem estar presentes em um caso concreto, a partir da seguinte reflexão sugerida: “mesmo não havendo tratamento diferenciado por parte da lei, há aqui alguma desigualdade estrutural que possa ter um papel relevante no problema concreto?” 
  1. Como “guia interpretativo” do direito, de modo que, após identificada a desigualdade estrutural, sejam identificados os meios para diminuir a estrutura hierárquica que a originou.   

O protocolo finaliza a primeira parte de seus direcionamentos reiterando a necessidade de que a magistratura atue enfrentando as desigualdades de gênero e buscando compreender como se revelam as formas de opressão, de modo a evitar que a aplicação supostamente neutra da lei sirva como “meio de manutenção das visões heteronormativas, racistas, sexistas e patriarcais dominantes, em descompasso com os preceitos constitucionais e convencionais da igualdade substancial.” 

Guia para magistradas e magistrados: um passo a passo 

A segunda parte do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero pode ser vista como uma espécie de manual para a atuação das magistradas e dos magistrados, com o objetivo de orientá-los na busca de um julgamento que priorize a perspectiva de gênero. O protocolo sugere aos julgadores “interpretar o direito de maneira não abstrata, atenta à realidade, buscando identificar e desmantelar desigualdades estruturais”, de modo a que todos os julgamentos tenham como norteador o princípio da igualdade substantiva.  

O próprio texto do protocolo rebate a crítica de que, ao julgar com a perspectiva de gênero os julgadores estariam sendo parciais. Ao contrário, a parcialidade residiria na “desconsideração as desigualdades estruturais, e não o contrário”:  

(…) em um mundo de desigualdades estruturais, julgar de maneira abstrata – ou seja, alheia à forma como essas desigualdades operam em casos concretos – além de perpetuar assimetrias, não colabora para a aplicação de um direito emancipatório.  

Além disso, o texto reforça que a aplicação da perspectiva de gênero não garante que todos os julgamentos sejam favoráveis a esses grupos, mas sim que ocorra uma “atuação jurisdicional mais transparente, legítima, fundamentada e respeitosa às partes envolvidas.” 

Nesse momento, o protocolo apresenta um passo a passo, que será brevemente descrito abaixo, em que é sugerido um roteiro para cada etapa do julgamento, além de dar exemplos de situações fáticas que podem vir a ser objeto de julgamento e que lidam com as assimetrias de gênero (discutidas (suscintamente serão apresentadas abaixo apenas algumas das questões ):   

  • PASSO 1 – Primeira aproximação com o processo: necessário, em um primeiro momento, identificar em qual contexto está inserido o conflito e se há questões claras de gênero sendo abordadas. Para além disso, o protocolo indica ser preciso se atentar às questões que pareçam, de início, neutras ao gênero, considerando que as desigualdades de gênero são produtos de uma disparidade estrutural e sempre presente nas relações.  

Questão relevante levantada pelo protocolo: é possível que desigualdades estruturais tenham algum papel relevante nessa controvérsia? 

  • PASSO 2 – Aproximação dos sujeitos processuais: tratamento das partes envolvidas para além dos autos, observando-se as circunstâncias que afetam a participação dos sujeitos no processo. 

Questão relevante levantada pelo protocolo: existem circunstâncias especiais que devem ser observadas para que a justiça seja um espaço igualitário para mulheres? 

  • PASSO 3 – Medidas especiais de proteção: verificar a necessidade de aplicação de medidas especiais de proteção, cujo deferimento deve ser pautado na análise do caso concreto e do contexto vivenciado pela pessoa, tendo em vista o princípio da cautela e com o fim de “romper com os ciclos de violência”.  

Questão relevante levantada pelo protocolo: As partes envolvidas estão em risco de vida ou de sofrer alguma violação à integridade física e/ou psicológica? 

  • PASSO 4 – Instrução processual: garantir que a audiência não seja um ambiente de propagação da violência institucional de gênero e que a prova pericial seja produzida atentando-se às desigualdades estruturais que sejam parte da demanda (nesse ponto, é necessário que também os peritos e demais atores do processo sejam capacitados para a não reprodução da desigualdade de gênero).  

Questão relevante levantada pelo protocolo: a instrução processual está reproduzindo violências institucionais de gênero? A instrução está permitindo um ambiente propício para a produção de provas com qualidade? 

  • PASSO 5 – Valoração da prova e identificação de fatos: aqui, o protocolo toma especial atenção para casos de violência doméstica, estupro e assédio sexual (quando do depoimento da vítima ou análise da viabilidade de produção de uma prova), por isso a necessidade de autoquestionamento pelas magistradas e magistrados se suas experiências pessoais estão interferindo na apreciação dos fatos “na minimização de sua relevância ou não maximização de sua relevância.” 

Questão relevante levantada pelo protocolo: Uma prova geralmente considerada relevante poderia ter sido produzida? (ex.: existem circunstâncias que poderiam impedir a produção de provas testemunhais, como medo por parte de testemunhas oculares de prestar depoimento?). 

  • PASSO 6 – Aplicação do marco normativo e precedentes aplicáveis: prestigiar a aplicação não apenas da legislação nacional, mas também de normas, recomendações, convenções e tratados internacionais de direitos humanos incorporados pelo Brasil, em especial se norteando pelo ratio decidendi de decisões judiciais “proferidas pelas cortes nacionais ou pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que envolvam mulheres, nas suas intersecções com outros marcadores da diferença”, com atenção à realização do controle de convencionalidade do sistema interno.  

Questão relevante levantada pelo protocolo: Qual marco jurídico nacional ou internacional se aplica ao caso? Qual a norma que presta maior garantia ao direito à igualdade às pessoas envolvidas no caso? 

  • PASSO 7 – Interpretação e aplicação do direito: necessárias a (i) interpretação não abstrata do direito, (ii) a análise de como uma lei pode ter sido construída para reproduzir algum estereótipo de gênero, (iii) a análise de como a própria lei pode ser conducente para a perpetuação das desigualdades de gênero diretamente (discriminação quanto a uma pessoa) ou (iv) indiretamente (discriminação quanto a um grupo).   

Questão relevante levantada pelo protocolo: determinada norma tem um impacto desproporcional sobre determinado grupo? Se sim, esse impacto é fruto ou perpetuador de desigualdades estruturais? 

Nessa oportunidade, o protocolo faz algumas considerações acerca da possibilidade do uso do controle de convencionalidade pelas magistradas e magistrados como ferramenta no julgamento com perspectivas de gênero. O texto define o controle de convencionalidade da seguinte forma:  

(…) consiste na verificação e avaliação se os atos normativos internos guardam ou não compatibilidade com as normas, os princípios e as decisões produzidas no âmbito dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, em face de sua primazia e dimensão vinculativa e normativa 

Por esse ângulo, o protocolo entende que, diante do compromisso do Estado Brasileiro tanto na promoção quanto  na proteção aos direitos humanos, os julgadores devem “respeitar e aplicar as normas e a jurisprudência que integram os sistemas internacionais de proteção”, bem como devem buscar enfrentar a desigualdade social e hierarquias estruturais.  

Questões de gênero específicas dos ramos da justiça 

Por fim, o protocolo apresenta, em sua terceira parte, certas peculiaridades encontradas nos diversos ramos da justiça, e que envolvem, em sua maioria, o gênero, abordando “exemplos de questões e problemáticas recorrentes de cada segmento”. Primeiramente são discutidos temas que subsistem em mais de uma esfera do Poder Judiciário e, logo após, são elencadas as especificidades de cada competência jurisdicional.  

Recentemente, mediante aprovação da Resolução nº 492/2023, a adoção das diretrizes estabelecidas no referido protocolo e discorridas acima tornou-se obrigatória, instituindo a capacitação de magistrados e magistradas no que diz respeito a direitos humanos, gênero, raça e étnica, em perspectiva interseccional, criando, ainda, o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. 

No que tange à capacitação das magistradas e magistrados, a Resolução nº. 492/2023, em seu art. 2º, estabeleceu ser dever dos tribunais e das escolas de magistratura a promoção de cursos de formação inicial e continuada que obrigatoriamente incluam “conteúdos relativos aos direitos humanos, gênero, raça e etnia”, conforme as diretrizes previstas no referido documento.  

Além disso, institui permanentemente o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário em caráter nacional (art. 3º), que tem como atribuições (art. 4 º) acompanhar o cumprimento da presente resolução, elaborar estudos e promover medidas de aperfeiçoamento quanto ao que se refere aos direitos humanos, organizar fóruns anuais e permanentes sobre o tema, realizar cooperação interinstitucional, e reuniões periódicas para a condução dos trabalhos do Comitê, dentre outras.  

Em voto emitido pela relatora Salise Sanchotene nos autos do ato normativo nº 0001071-61.2023.2.00.0000, que aprovou por unanimidade a Resolução para a implantação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, entendeu-se pela necessidade de que o Poder Judiciário esteja aberto a “revisar as premissas sobre as quais é realizada a aplicação do direito no exercício da jurisdição, no assessoramento à atividade jurisdicional, no tratamento das partes e pessoas que buscam o Poder Judiciário.” 

Esse é um passo tomado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) visando alcançar a igualdade de gênero, que é uma das metas definidas no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS 5 da Agenda 2030 da ONU, a qual foi internalizada pelo CNJ para o Poder Judiciário de todo o território nacional.  

Com base em suas diretrizes, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero já está sendo utilizado para o julgamento de diversas causas.

Autora: Alicia Paola Alves Possadas

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