Recuperação Judicial de SPEs e Patrimônio de Afetação 

Em maio de 2022, o Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial nº 1.973.180-SP para fixar o entendimento de que as sociedades de propósito específico “estão submetidas a regime de incomunicabilidade, criado pela Lei de Incorporações, incompatível com o da recuperação judicial”. 

Os temas incorporação imobiliária e recuperação judicial se cruzaram na história jurídica em março de 1999, com a falência da Encol S.A., Engenharia, Indústria e Comércio (“Encol”). A Encol foi fundada em 1961 por Pedro Paulo de Souza, em Goiânia. Entre as consequências da decretação da falência, estima-se que 42.000 adquirentes tenham ficado sem os imóveis e sem o capital que haviam investido.  

A repercussão do caso deu origem ao chamado “patrimônio de afetação”, originariamente constante da Medida Provisória 2.221, de 04 de setembro de 2001, convertida na Lei 10.931/2004. 

É válido ressaltar que a definição de patrimônio de afetação é dada na doutrina por Luiz Carlos Sturzenegger1: “chama-se patrimônio de afetação o patrimônio especial segregado do patrimônio geral, para a consecução de uma finalidade específica. Sua constituição se dá quando uma pessoa destaca e mantém patrimônios autônomos para atender a fins específicos, de modo que: a) aja em conformidade estreita com uma previsão legal, pois a constituição de patrimônio de afetação constitui exceção ao princípio geral de que o patrimônio é garantia comum dos credores; b) os elementos do patrimônio afetado tornem-se independentes do patrimônio geral; e c) os elementos do patrimônio afetado respondam somente pelas dívidas contraídas em virtude do patrimônio especial especificamente constituído”. 

O conceito foi abarcado pela Lei 10.931/ 2004, na forma do art. 31-F acrescido à Lei 4.591/1964, segundo o qual: “os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação”. 

Apesar de  a literalidade da lei ser clara, a interpretação gramatical não responde se eventual concessão de recuperação judicial atingiria estes mesmos patrimônios. 

Havia, até o julgamento do Recurso Especial nº 1.973.180-SP, o questionamento acerca de se a razão de não haver menção na lei de incorporações imobiliárias à recuperação judicial se deveria ao fato de que a Lei 10.931/ 2004 é anterior à Lei 11.101/ 2005 ou se, ao revés, a Lei 10.931/ 2004 quis, de fato, excluir a atualmente denominada “recuperação judicial” da hipótese do artigo 31-F, uma vez que poderia ter feito menção à concordata (instituto que, antes da Lei 11.101/ 2005 era o que mais se aproximaria da recuperação judicial) e não o fez. 

Veja-se que no Recurso Especial nº 1.973.180-SP, os recorrentes arguiam que as sociedades de propósito específico (SPEs) têm legitimidade para pleitear recuperação judicial porque não estão expressamente excluídas pelo art. 2º da Lei 11.101/2005 (a lógica é singela: sustentava-se que se a lei não proíbe expressamente algo, há permissividade).  

No julgamento em questão, procedeu-se a um entendimento bifurcado acerca das SPEs que possuem patrimônio de afetação e daquelas que não o possuem.  Para as últimas, aplica-se o regime da recuperação judicial. O que não se pode imaginar, contudo, como se verá mais adiante, é a consolidação substancial atingindo a SPE, conduta que renovaria o “risco Encol”. Isso porque, mesmo que não haja patrimônio de afetação, a prática das construtoras é, de fato, abrir uma conta para gerenciar tudo quanto diga respeito ao empreendimento (mormente, despesas da própria construção e eventual passivo ambiental). 

Para as primeiras – objeto central deste texto – o STJ entendeu haver um regime de incomunicabilidade incompatível com a recuperação judicial. Fê-lo mencionando o Enunciado nº 628, da VIII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Os patrimônios de afetação não se submetem aos efeitos de recuperação judicial da sociedade instituidora e prosseguirão sua atividade com autonomia, além de incomunicáveis em relação ao seu patrimônio geral, aos demais patrimônios de afetação por ela constituídos e ao plano de recuperação até que extintos, nos termos da legislação respectiva, quando seu resultado patrimonial, positivo ou negativo, será incorporado ao patrimônio geral da sociedade instituidora”. Registrou-se, ainda, que, “no caso de decretação da quebra da incorporadora, a falência não atingirá as incorporações submetidas à afetação, cabendo aos adquirentes optar pela continuação da obra ou liquidação do patrimônio de afetação, na forma do art. 31-F da Lei nº 4.591/1964”. 

Em outras palavras, o entendimento que se adotou foi o de que a SPE, ao constituir patrimônio de afetação, escolheu um regime jurídico-normativo, por meio do qual segregou não só seu risco, mas aquele incorrido pelos consumidores-adquirentes. 

Para fomentar o debate, fica a questão: e se houver prova de que a constituição de patrimônio de afetação ocorreu com o intuito de lesar os credores? Há incomunicabilidade do regime da Lei 11.101/2005 como definiu o STJ? O entendimento que se postula aqui como adequado é o de, nessa hipótese, proceder-se a uma interpretação sistemática do art. 187 do Código Civil, com o art. 130 da Lei 11.101/2005 e, então, desconstituir-se o patrimônio de afetação, até porque o art. 168 da Lei 11.101/2005  criminaliza a prática de “ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem”. 

Para aprofundar-se a reflexão, é válido rememorar o ocorrido no caso das empresas do Grupo Viver. A decisão que deferiu o processamento de sua recuperação judicial, proferida em 29 de setembro de 2016, assim afirmou: 

A Lei 11.101/2005 não trata especificamente sobre os pedidos de recuperação judicial formulados por sociedades que, sendo requerentes em litisconsórcio ativo, integram um mesmo grupo societário. Tal fato, entretanto, não inviabiliza esta possibilidade. Sobre o tema, observa Fábio Ulhoa Coelho que “a lei não cuida da hipótese, mas tem sido admitido o litisconsórcio ativo na recuperação, desde que as sociedades empresárias requerentes integrem o mesmo grupo econômico, de fato ou de direito, e atendam, obviamente, todas aos requisitos legais de acesso à medida judicial” (Comentários à Lei de falências e de recuperação de empresa, 7ª ed., 2010, Saraiva, p. 139). No caso dos autos, patente a existência de um grupo societário, com controle comum de inúmeras sociedades de propósito específico, o que autoriza o pedido de recuperação em litisconsórcio, a denominada consolidação processual. Nas palavras de Cerezetti, a consolidação processual exige que “a votação do plano, ainda que programada para ocorrer em assembleias convocadas para a mesma data, é feita de forma separada e em respeito à separação jurídica existente entre as sociedades do grupo. Os credores de cada devedora se reunirão e, em observância às classes e aos quoruns previstos na LRE, deliberarão sobre o plano. O resultado do conclave será, portanto, apurado com relação a cada uma das devedoras” (Cerezetti, Sheila C. Neder, Grupos de sociedades e recuperação judicial: o indispensável encontro entre Direitos Societário, Processual e Concursal, in Processo Societário II – Flávio Luiz Yarshell e Guilherme Setoguti J. Pereira (Coord.), São Paulo, Quartier Latin, 2015, p. 763). As requerentes pedem também a consolidação substancial, ou seja, a comunhão dos ativos e passivos de todas as sociedades integrantes do grupo, com a apresentação de um plano único a ser votado por uma única assembleia de credores, ignorando-se as diversas personalidades jurídicas das devedoras. Diante da dimensão do grupo e da grande quantidade de documentos acostados à inicial, faz-se necessária a análise do Administrador Judicial sobre o requerimento de consolidação substancial, em relatório a ser apresentado em 30 dias. […]. Estando presentes, ao menos em um exame formal, os requisitos exigidos em lei, defiro o processamento da recuperação judicial das sociedades acima mencionadas (GRUPO VIVER)2. 

Em face dessa decisão houve a interposição de agravos de instrumento, entre eles o processado sob o número 2236772-85.2016.8.26.0000, de relatoria do Des. Fábio Tabosa, então integrante da 02ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, insurgindo-se exatamente quanto à inclusão das sociedades de propósito específico no regime da Lei 11.101/2005. 

Referido agravo argumentou que as sociedades de propósito específico incluídas na recuperação judicial em breve deixariam de existir e que todas elas se encontravam no último estágio justificativo de sua existência; isto é:, todas aguardavam, segundo o recurso, apenas o encerramento da venda das unidades condominiais dos empreendimentos para o qual foram constituídas. Essa ressalva fática é importante para a análise do acórdão proferido pelo TJSP no julgamento do agravo supracitado: 

Assiste razão ao agravante quando aponta a incompatibilidade da própria recuperação judicial com a disciplina jurídica dos patrimônios de afetação. […]. O fato é que o art. 47 da Lei 11.101/2005 (LGL\2005\2646), quando enumera os objetivos, diretrizes e mecanismos da recuperação judicial, fala em manutenção da fonte produtora, com preservação da empresa e estímulo à atividade econômica, ao passo que, quando se pensa em empreendimentos imobiliários consistentes na edificação pelo sistema de incorporação, está-se diante de atividades em si mesmas limitadas temporalmente, com objetivos delimitados e destinadas a se esgotar com o encerramento do empreendimento, e, portanto, sem o sentido de continuidade indeterminada ou de permanência que transparece da redação do citado art. 47. De se notar que essa característica não se restringe às incorporações com patrimônio de afetação, embora talvez no tocante a esses casos mais facilmente se tenha a noção de esgotamento da atividade, quando se pensa no exaurimento do patrimônio de afetação. Também ao que se refere às situações de inexistência desse, contudo, a atividade organizada em torno do empreendimento, passível de consideração separadamente das demais obrigações do incorporador, tende a se exaurir, levando a situação análoga. […]. A Lei n. 4.591/64 restringiu a autonomia do incorporador ao conjunto dos adquirentes. […]. Mesmo antes das modificações introduzidas pela Lei n. 10.931/2004, já se previa a possibilidade de reunião dos contratantes da construção em assembleia (art. 49), bem como a eleição de Comissão de Representantes (art. 50), com poderes fiscalizatórios (art. 55, §§ 3º e 4º, e 61), bem como, especificamente em situações de crise referente  à situação financeira ou andamento da obra, a atribuição aos adquirentes poderes mais amplos, envolvendo a possibilidade de assunção do controle da incorporação, com destituição do incorporador, nos casos do art. 43, VI. A reforma legal de 2004, com a introdução do capítulo e dispositivos relativos ao patrimônio de afetação (arts. 31-A a 31-F), intensificou a gama de atribuições dos adquirentes, permitindo-lhes, por meio da Comissão de Representantes, em caso de falência do incorporador, a deliberação entre prosseguir com a obra ou liquidá-la, mediante a venda do patrimônio de afetação, nos termos do arts. 31-F. Mas não ficou por aí. Segundo o inciso VII do art. 43, também introduzido pela Lei nº 10.931/2004 (LGL\2004\2730) e com função complementar ao inciso VI, em havendo patrimônio de afetação, a mera insolvência do incorporador autoriza a assembleia geral dos adquirentes a deliberar pelo prosseguimento da construção, sob sua administração, ou pela venda do terreno, acessões e demais bens e direitos do patrimônio afetado. […]. A lógica do sistema, enfim, é a de que, perdendo o incorporador as condições para a condução do empreendimento, assumam os próprios adquirentes, pelos organismos próprios, essa tarefa, seja pela destituição do primeiro (possível com ou sem patrimônio de afetação), seja pela alternativa mais radical de sua liquidação (exclusiva das obras com patrimônio afetado). 

Entendeu o TJSP que as sociedades de propósito específico (SPEs) com patrimônio de afetação não podem ser inseridas no bojo da recuperação judicial da holding: (i) ela possui características próprias mencionadas na Lei de Incorporações Imobiliárias; e, (ii) incluí-la sem qualquer ressalva seria colocar por terra as alterações legislativas que conceberam o patrimônio de afetação com o fito de evitar o “risco Encol”. Isso não significa, contudo, que tais SPEs não possuam nenhum meio de soerguimento. Se o objetivo da Lei 10.931/ 2004 foi evitar o “risco Encol”, a questão trazida à reflexão é a seguinte: é possível pensar em preservação de uma SPE, utilizando a terminologia do art. 47 da Lei 11.101/2005? Note-se, inclusive, que o art. 50, inciso XVI, da Lei 11.101/2005 elenca, entre os meios de recuperação, justamente “a constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor”.  

É bem verdade que constituir uma SPE para recuperar uma empresa “não-SPE” não significa, per se, que SPEs possam ou não ser submetidas ao regime de recuperação judicial. Todavia, não se pode negar o reconhecimento do legislador acerca de sua importância nesse tema que envolve interesses múltiplos. 

Além disso, a resposta deve considerar a necessidade de não se confundir a preservação da holding com aquela da SPE dotada de patrimônio de afetação e destinada à construção de determinado empreendimento. Isso porque é possível que a crise: 

  1. limite-se à holding e não afete a SPE; ou, 
  1. limite-se à SPE e não afete a holding; ou 
  1. abranja a holding e a SPE, de modo que nas duas últimas situações deve se levar em conta se a SPE possui ou não patrimônio de afetação.  

Se a SPE não possui patrimônio de afetação, não existe incompatibilidade entre as Leis 4.591/64 e 11.101/2005. 

Contudo, o que não se pode imaginar, como se verá mais adiante, é a consolidação substancial atingindo a SPE, conduta que renovaria o “risco Encol”. Isso porque, mesmo que não haja patrimônio de afetação, a prática das construtoras é, de fato, abrir uma conta para gerenciar tudo quanto diga respeito ao empreendimento (mormente, despesas da própria construção e eventual passivo ambiental). Imagine-se, por outro lado, que a SPE possua patrimônio de afetação, tal qual ocorreu no caso da Viver, aqui mencionado. 

Nessa hipótese, de um lado, pode-se sustentar que a SPE, ao constituir patrimônio de afetação, escolheu um regime jurídico-normativo, por meio do qual segregou não só seu risco, mas aquele que concordaram em correr os consumidores/adquirentes das unidades condominiais. Foi esse o caminho que o Superior Tribunal de Justiça adotou. Não seria, contudo, impossível de se imaginar interpretação que sustentasse que a Lei 11.101 não é incompatível com a Lei de Incorporações Imobiliárias e, nessa hipótese, necessário teria sido que fizessem reflexões sobre como se operacionaliza a compatibilização entre os dois diplomas. 

Independentemente da corrente que se adote, a segregação do risco pode ser vista, por exemplo, no art. 31-D da Lei 4.591/64, que disciplina as obrigações do incorporador atinentes à administração do patrimônio de afetação, entre as quais:  

(i) “promover todos os atos necessários à boa administração e à preservação do patrimônio de afetação, inclusive mediante adoção de medidas judiciais” (inciso I); e 

 (ii) “manter apartados os bens e direitos objeto de cada incorporação” (inciso II). 

À luz desses dispositivos e do disposto no art. 31-E da mesma lei – muito embora não os mencione – o TJSP entendeu, no agravo de instrumento 2236772-85.2016.8.26.0000, que se está “diante de atividades em si mesmas limitadas temporalmente, com objetivos delimitados e destinadas a se esgotar com o encerramento do empreendimento” e que isso destoaria dos objetivos do art. 47 da Lei 11.101/2005 (e essa foi também a posição do STJ no julgamento do Recurso Especial nº 1.973.180-SP). 

Todavia, o precedente do STJ com que se principiou essa reflexão não se aprofundou na diferença da haver ou não patrimônio de afetação. O principal efeito da constituição do patrimônio de afetação é a segregação de certos bens a fim de que se limite a responsabilidade do devedor, de modo que tal separação seja oponível a terceiros. Não há nada neste conceito que indique vedação legal à aplicação do regime da Lei 11.101/2005 às Sociedades de Propósito Específico (dotadas de patrimônio de afetação), o que leva a crer que tal  decisão adotada pelo TJSP no agravo de instrumento 2236772-85.2016.8.26.0000 tenha se fundado em juízo de equidade – na ótica do que entendia a turma julgadora –, e não na aplicação da literal disposição da legislação federal. O que se quer observar é que: 

  1. tanto a Lei 11.101/2005 quanto a Lei 4.591/64 são leis especiais; 
  1. o art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, afirma que “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. 

Com base nessas duas premissas, a primeira observação a se fazer é que não houve revogação expressa por parte da Lei 11.101/2005 de nenhuma das disposições da Lei 4.591/64. Ainda que a Lei 11.101/2005 tivesse estabelecido disposições gerais ou especiais a respeito da Lei de Incorporação Imobiliária, isso não significa sua revogação (art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Isso porque as condições para superação tácita são: (1) se o regramento da lei nova for inteiramente incompatível com o diploma precedente ou (2) se regular inteiramente a matéria sobre a qual ele dispunha. Nenhuma das duas hipóteses se faz presente. 

A solução dada pelo magistrado João de Oliveira Rodrigues Filho na recuperação judicial da Tiner (processo nº 1043925-30.2017.8.26.0100), para compatibilizar ambos os diplomas, encaminhou-se no seguinte sentido:  

“Deve o incorporador obter autorização da comissão de representantes para submissão do patrimônio segregado à recuperação judicial. Em seguida, havendo aquiescência dos adquirentes, deverá apresentar plano de reestruturação da operação, tão somente do patrimônio de afetação que se pretenda reestruturar, vedada qualquer hipótese de consolidação substancial, mesmo que apurada situação de homogeneidade entre patrimônios afetados para obras distintas”. 

Há, como se vê, um dissenso entre o TJSP e o STJ acerca da admissibilidade da recuperação judicial de SPE, ainda que haja patrimônio de afetação. Todavia, independentemente da existência ou não de patrimônio de afetação, a fim de se evitar “o risco Encol” (e, considerando-se que, quando inexiste referido instituto, ainda assim há uma conta destinada a prover despesas do empreendimento), recomendável que não se proceda à consolidação substancial e que a SPE possua plano próprio com votação separada. 

Esse raciocínio tem por objetivo prestigiar a preservação da empresa (art. 47 da Lei 11.101/2005) e, ao mesmo tempo, proteger os adquirentes das unidades. Isso significa dizer que: mesmo em se admitindo a recuperação judicial de SPE, não é recomendável a consolidação substancial. Não se pode imaginar aqui uma resposta terminativa porque o artigo 69-J da Lei 11.101/2005 estabelece os requisitos para a consolidação substancial e, entre eles, nada consta que diga respeito à estrutura de SPEs e, menos ainda, que negue essa possibilidade. Na verdade, a leitura dos incisos do art. 69-J traz um conjunto de caracteres cuja existência na relação entre SPE e holding é provável:  

(1) existência de garantias cruzadas; 

(2) relação de controle ou de dependência;  

(3) identidade total ou parcial do quadro societário; e  

(4) atuação conjunta no mercado entre os postulantes. Ora, se a Lei 11.101/2005 exige, para a dispensa de autorização da consolidação substancial por meio de AGC a exigência de ao menos dois desses quatro requisitos e todos eles são recorrentes nesse tipo de concerto societário, ou se adota a posição que hoje é a sustentada pelo STJ (incompatibilidade entre os regimes de SPE e recuperação judicial), ou, provavelmente, sustentar-se-á ser a hipótese de consolidação substancial entre SPEs e holding. 

Recomendável, todavia, que, cada SPE, caso queira se submeter aos efeitos da Lei 11.101/2005 apresente plano específico e aprovado pelos interessados, isto é, pela comissão de adquirentes. Isso porque a Lei de Incorporação Imobiliária é clara ao conferir “opção aos adquirentes, através da constituição de uma comissão de representantes, de continuarem a obra ou liquidarem o patrimônio afetado, para adimplementos dos débitos e ele correlacionados e eventual ressarcimento dos prejuízos por eles suportados, sem prejuízo de responsabilização do incorporador que praticou ato prejudicial ao patrimônio de afetação, conforme arts. 31-F, caput e parágrafos e 43, VI e VII, todos da lei 4.591/64”. 

A comissão de representantes pode optar por continuar a obra ou liquidar o patrimônio, e, em se escolhendo a primeira opção, não só viável, como desejável que à SPE se apliquem os benefícios da recuperação judicial, como, exemplificativamente, o stay period. Com efeito, a suspensão de 180 dias das ações e execuções envolvendo um determinado empreendimento pode ser determinante para o seu sucesso, consubstanciando no término da obra e na sua transmissão aos adquirentes. Isto é:, trata-se de elemento que pode garantir a “manutenção da fonte produtora”, à luz do art. 47 da Lei 11.101/2005, e evitar a liquidação do patrimônio afetado. 

Procedendo-se desse modo, a questão relativa ao modo como deve ser anotado o crédito do adquirente das citadas unidades não suscitará conflitos, eis que, como dito, está-se a propor, para a SPE, plano próprio e com votação apartada. Desse modo, garantir-se-á aos adquirentes a possibilidade de, por exemplo, em caso de plano iníquo, liquidar o patrimônio afetado (se houver), como prevê o art. 31-F da Lei 4.591/64. Se, contudo, não houver patrimônio de afetação, ainda assim a Lei 4.591/64 obriga a existência de patrimônio destinado à execução da obra. E, se a empreendedora descumprir a dicção da Lei 4.591/64 e não constituir patrimônio de afetação, a solução legal é a mais conhecida: todo o ativo responde pelas dívidas. É verdade que, nessa hipótese, a companhia em crise terá soterrado o esforço legislativo decorrente do risco Encol, mas é igualmente verdade que os credores não podem se ver obrigados a arcar com decisões livremente tomadas por seus devedores e cujos resultados tenham sido negativos. Cumpre anotar que, por mais que a Lei 11.101/2005 prestigie a preservação da empresa, de rigor se atentar para a impossibilidade de seu uso abusivo, como se nota em recuperações judiciais na qual o instituto é utilizado como se fosse a “tábua de salvação” a justificar qualquer inadimplemento, inclusive de créditos extraconcursais ou mesmo daqueles que, à época do pedido de recuperação, sequer existiam. A preservação protegida pela Lei 11.101/2005 é da empresa recuperável e o custo do soerguimento não pode ser maior do que o passivo existente quando do pedido de recuperação. 

Uma reflexão final e adicional relevante é: pode haver recuperação judicial de um patrimônio de afetação sem SPE? Isto é, a que regime se submete um patrimônio de afetação sem a constituição de uma SPE no contexto das incorporações imobiliárias? A relevância desse questionamento advém da constatação de que em nenhum momento a Lei 4.591/64 obriga, para a constituição do patrimônio de afetação, que exista uma SPE. Nessa hipótese, o patrimônio de afetação não se submete aos efeitos da recuperação judicial, embora a sociedade que o constituiu tenha preservado seu direito de submissão à Lei 11.101/2005. Embora a Lei 11.101/2005 não dê resposta específica, remanesce a questão: e se houver prova de que a constituição de patrimônio de afetação ocorreu com o intuito de lesar os credores? Não se trata de hipótese de desconsideração da personalidade jurídica porque, como cediço, o patrimônio de afetação prescinde da constituição de uma pessoa jurídica. Tanto assim que, para sua formação, é despicienda a existência de uma SPE. Em primeiro lugar, nesse caso, impende lembrar que a regra geral, isto é, o Código Civil, não anui com o abuso de direito (art. 187).  

Em segundo lugar, o art. 168 da Lei 11.101/2005 criminaliza a prática de “ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem”. Na esfera cível, a solução mais adequada, à luz do art. 187 do Código Civil, parece ser, nesse caso, a aplicação analógica do art. 130 da Lei 11.101/2005, com a consequente desconstituição do patrimônio de afetação. 

Autor: Bruno Marques Bensal

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