Teoria da Imprevisão: Perspectivas para o pós-pandemia

Teoria da imprevisão: O que, na prática, está em causa?

Sob a expressão “teoria da imprevisão” encontra-se uma amálgama teórica e prática, doutrinária e jurisprudencial, que traz consigo uma imensidão de noções que, ao fim e ao cabo, revelam um embate entre a obrigatoriedade e o intervencionismo contratuais. Otavio Luiz Rodrigues Junior rememora pesquisa realizada por Aristide Chiotellis nos anos 1980, que resultou na identificação de 56 teorias diferentes para fundamentar a chamada alteração da base do negócio jurídico2

Nesse âmbito, podem-se destacar elementos como Pacta sunt servanda, cláusula rebus sic stantibus, excessiva onerosidade, caso fortuito, força maior, justiça contratual, função social, vícios do consentimento (nomeadamente a lesão), alteração de circunstâncias, base do negócio jurídico, enriquecimento sem causa, revisão e resolução contratuais, cláusula de hardship na seara do direito empresarial internacional, cláusulas abusivas na seara do direito do consumidor; no plano legislativo, por sua vez, os artigos 317, 393, 478 e 479 do Código Civil, o artigo 19 da Lei do Inquilinato, o artigo 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor e tantos outros; tudo se coloca em um cenário de tentativas de equalização da obrigatoriedade com o intervencionismo contratuais. 

Qualquer que seja o debate, na prática, se está a definir qual desses dois valores (obrigatoriedade ou intervencionismo) recebe ênfase em dada situação concreta, em dado momento histórico. 

Não se pretende aqui fazer incursões teóricas e dogmáticas sobre cada um dos elementos citados acima, tampouco desconsiderar as suas várias nuances técnicas, mas simplesmente analisar o tema sob um viés prático, baseado em pesquisa de casos concretos julgados no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e apresentar reflexões e perspectivas sobre a aplicabilidade prática da teoria da imprevisão em um cenário pós-pandemia de coronavírus. 

O mundo moderno conheceu de perto, e de uma forma extremamente dolorosa, as agruras de uma pandemia de proporções globais que até julho de 2021 causou a morte de quase quatro milhões de pessoas em todo o mundo, mais de 500 mil delas só no Brasil. E é óbvio que os impactos de um tal fenômeno se alastrariam para todo e qualquer aspecto da existência humana e da vida em sociedade.  

Com a economia global submetida a um stress com poucos precedentes na história, as molas propulsoras dessa economia foram se dissolvendo rápida e violentamente. Empresas, empregos e contratos passaram a receber condicionantes externas de diversas ordens – notadamente econômicas e políticas -, impondo a criação de verdadeiras válvulas de escape para salvar as posições e relações jurídicas que não sucumbiram à grave crise. 

Entre tais válvulas, medidas legais e governamentais de amparo e equilíbrio às relações jurídicas, especialmente as de índole privada, atingiram uma frequência tão marcante que a necessidade de suporte externo dessas relações passou à condição de normalidade.  

Apenas a título ilustrativo, citem-se a Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020, que estabeleceu o chamado Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET)3, e a sucessão de medidas provisórias que mudaram sensivelmente a forma como as empresas se relacionam com seus funcionários, com destaque para a possibilidade de suspensão de contratos de trabalho e de redução de jornada com redução de salário, promovendo revisões de dogmas da cultura jurídica trabalhista impossíveis de se imaginar em situações normais. 

Todo esse cenário forçou situações de resilição, resolução e revisão de contratos, sempre amparadas na pressão exercida pelos referidos fatores externos e na consequente perda do equilíbrio econômico e jurídico das relações contratuais. 

Diante desse complexo contexto, propõe-se aqui uma análise mais prática do modo como a teoria da imprevisão se apresentava antes da pandemia, como se apresentou ao longo desta e como possivelmente se apresentará nesse pós-pandemia. 

Trataremos sobre a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e sobre a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, buscando traçar um perfil do Judiciário brasileiro quanto ao embate entre a obrigatoriedade e o intervencionismo contratuais.  

Por fim, como exercício prospectivo, compararemos os cenários de aplicação da teoria da imprevisão antes e durante a pandemia para nortear possíveis perspectivas para esse período pós-pandemia. Para tanto, utilizaremos duas balizas: i) a teoria psicológica comportamental aplicada ao Direito (Behavioral Law); e ii) o impacto da pandemia no sistema de precedentes. 

Contexto jurisprudencial da teoria da imprevisão

O primeiro elemento que chama a atenção quando da análise do contexto jurisprudencial da teoria da imprevisão é um recente silêncio do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria, ou pelo menos a inércia da Corte no desenvolvimento técnico dos cenários de ruptura da obrigatoriedade dos contratos. 

Em um passado um pouco mais remoto, o STJ já fez numerosas incursões relevantes sobre o tema. Segundo Otavio Luiz Rodrigues Junior, constam 638 acórdãos sobre revisão judicial de contratos na jurisprudência do STJ entre os anos de 2008 e 2011.4 

O STJ julgou casos envolvendo inflação, variação cambial, dissídios coletivos, flutuação de preços de produtos no mercado, secas e enchentes, pragas a lavouras, guerra no Oriente Médio, eleições presidenciais, entre outros fatores, e reconheceu que nenhum desses fenômenos autorizaria a incidência da teoria da imprevisão5. Por outro lado, o Tribunal reconheceu e aplicou a teoria da base objetiva do negócio, por exemplo, no Recurso Especial 53.345-7/CE, julgado em 6 de setembro de 1995, sob a relatoria do Min. Ari Pargendler. Da ementa consta: 

DIREITO CIVIL. CONTRATOS. SUPERVENIÊNCIA DE LEI. A lei nova é inoponível aos contratos em curso, salvo se modificando a conjuntura econômica afeta a base do negócio jurídico. Recurso especial não conhecido. 

Sobre o tema, Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Jr. registram que a teoria da base objetiva do negócio teria de vez quando alterações nos condicionalismos naturalmente pressupostos pelas partes por causarem “perturbação na equivalência (Aequivalenzerstörung) das prestações ou uma frustração no escopo (Zweckvereiteilung)”6

Novamente, é preciso destacar que essas breves linhas não se prestam a romper as balizas conceituais e dogmáticas que distinguem os institutos (teoria da imprevisão vs. teoria da base do negócio jurídico), mas visa a apenas colocá-los juntos em um cenário mais amplo em que os condicionalismos de cada relação contratual se impõem e desafiam soluções de ênfase na obrigatoriedade ou no intervencionismo contratuais.  

De volta à jurisprudência da Corte, hoje, instaurou-se um relativo silêncio sobre a matéria, possivelmente causado pela ampliação da jurisprudência defensiva naquele tribunal, pois o tema sempre acaba esbarrando na Súmula nº 57, que desautoriza (ou pelo menos desestimula) a interpretação de cláusulas contratuais em sede de recurso especial, e da famigerada Súmula nº 78, cuja promiscuidade em sua aplicação leva muito mais a uma negativa de jurisdição do que propriamente a uma organização das vias de manejo do Recurso Especial, tendente a coibir o exercício abusivo do direito às instâncias e meios recursais. 

Por isso mesmo, a árdua tarefa de amadurecer a teoria da imprevisão acabou sendo entregue de maneira decisiva aos tribunais estaduais, já que a análise da moldura fática e jurídica lhes cabe de maneira muito mais nítida do que aos tribunais superiores. 

Assim, a compreensão do cenário prático da teoria da imprevisão passa necessariamente pela análise da atuação desses tribunais, que passam a ser os pilares para um perfil mais ou menos liberal em sede de contratos. 

A título de referência, realizamos uma pesquisa sobre teoria da imprevisão na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com os seguintes parâmetros: 

i) para que tenhamos noção do comportamento do tribunal quanto à aplicação da teoria da imprevisão tanto nos cenários anteriores quanto no cenário posterior ao surgimento da pandemia de coronavírus, estendemos a pesquisa pelos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021; 

iii) para conferir objetividade à pesquisa, fixamos o termo “teoria da imprevisão” como parâmetro de busca; e 

ii) por uma questão de viabilidade, limitamos a pesquisa às ementas dos acórdãos do TJSP, sempre coletando os trinta primeiros acórdãos de cada ano-calendário, totalizando cento e vinte acórdãos pesquisados em quatro anos; e 

iv) não se distinguiu o fundamento para a não aplicação da teoria da imprevisão, estando agrupados, indiferentemente, os acórdãos que reconhecem que a situação fática apresentada não conduz à possibilidade de revisão do contrato e aqueles acórdãos que negam a interferência nos contratos por ausência/insuficiência de provas da situação ensejadora da intervenção. 

Seguindo tais parâmetros, seguem alguns resultados da pesquisa: 

i) Em 2018, foram 101 acórdãos com a “teoria da imprevisão” expressa na ementa; em 2019, 100 acórdãos; em 2020, 94 acórdãos; e, em 2021, até o mês de julho, 55 acórdãos; 

ii) Nos anos de 2018 e 2019, nenhum dos acórdãos pesquisados com a “teoria da imprevisão” expressa na ementa reconheceu a aplicabilidade da teoria aos casos concretos sub judice

iii) No ano de 2020, a teoria da imprevisão foi reconhecida e aplicada em aproximadamente 13,5% dos acórdãos pesquisados; 

iv) No ano de 2021, o percentual de incidência da teoria da imprevisão aumentou para 23,5% dos acórdãos pesquisados; 

Tais resultados nos trazem algumas reflexões. 

A primeira delas, decorrente do item ii), diz respeito à ínfima aplicação prática da teoria da imprevisão nos anos que antecedem a pandemia. Nesse ponto, com a ampliação da amostragem da pesquisa, é possível inclusive chegar a uma aplicabilidade prática quase nula. 

Em segundo lugar, tais resultados confirmam a ênfase restritiva constante da obra de Washington de Barros Monteiro e Carlos Alberto Dabus Maluf, para quem a teoria da imprevisão é “inspirada em razões de equidade e de justo equilíbrio entre os contratantes, tendo sua justificativa na RADICAL mudança da situação econômica e no EXTREMO de ABSOLUTA imprevisibilidade”9. (grifo nosso) 

Por último, o aumento da incidência prática da teoria da imprevisão no cenário de pandemia acaba definindo essa mesma pandemia como um condicionante apto a desencadear os efeitos da teoria da imprevisão. Isso significa que o grau de exigência para a aplicação prática da referida teoria se eleva a um patamar altíssimo, tendo como condicionante de referência um fenômeno que colapsou a economia, bem como muitos aspectos da existência humana e as relações sociais como um todo.  

Ora, pelo menos sob o prisma sanitário, o impacto da pandemia de coronavírus só se pode comparar com outras pandemias, tais como a de Gripe Espanhola, ocorrida em 1918, que dizimou mais de um quarto da população mundial, apenas para citar o exemplo mais “recente” e de proporção mais aproximada, separado dos dias atuais por mais de cem anos. 

A hipótese aqui aventada é que a condicionante da pandemia de coronavírus traz consigo uma grande possibilidade de anulação prática da teoria da imprevisão por um bom tempo após o término desse cenário catastrófico. 

Se essa hipótese for contextualizada com a teoria da base do negócio jurídico, consigne-se que a pandemia acaba representando o aspecto objetivo da teoria. Segundo Clóvis V. do Couto e Silva, em artigo de referência sobre o tema: 

A “base objetiva do negócio jurídico” decorre de uma “tensão” ou “polaridade” entre os aspectos voluntaristas do contrato – aspecto subjetivo – e o seu meio econômico – aspecto institucional – o que relativisa, nas situações mais dramáticas, a aludida vontade, para permitir a adaptação do contrato à realidade subjacente. 

Como relação de polaridade entre o contrato e o seu meio, ou entre o seu aspecto subjetivo e o institucional, não atua ela de modo automático, como sucede com a “cláusula rebus sic stantibus“, pois supõe, sempre, um juízo de valor a respeito da importância das modificações do meio econômico em que o contrato se situa.10  

A pandemia atua, assim, como o meio em que está situado o contrato, e é justamente nesse ponto que se permite a comparação com o período pós-pandêmico como meio em que está situado o contrato. Ou seja, cria-se um espaço para que dois cenários incomparáveis (o período pandêmico e o período pós-pandêmico) acabem recebendo a mesma valoração, fazendo com que a recorrência da intervenção nos contratos no pós-pandemia venha a ser ainda menor, beirando o zero. 

A título de reforço dessa hipótese, trazemos dois argumentos: i) a heurística de ancoragem e os vieses cognitivos; e ii) o sistema de precedentes. 

Heurística de ancoragem e vieses cognitivos

A teoria psicológica comportamental aplicada ao Direito, ou Behavioral Law, normalmente se coloca no contexto geral da análise econômica do direito.  

O já amplamente difundido law and economics se presta, no dizer de Christine Jolls, Cass Sunstein e Richard Thaler, a determinar as implicações do comportamento racional de maximização de utilidade dentro e fora dos mercados, bem como e suas implicações para eles e outras instituições. Por seu turno, o Behavioral Law propõe incorporação de elementos comportamentais, tais como a racionalidade limitada (bounded rationality), a força de vontade limitada (bounded willpower) e o auto-interesse limitado (bounded self-interest), dá suporte à operação e ao aperfeiçoamento do sistema legal11

Das noções dessa teoria psicológica, destacam-se as chamadas heurísticas, que, segundo Edilson Vitorelli e João Henrique de Almeida, “são processos mentais de simplificação da realidade que as pessoas utilizam, inconscientemente, para conhecer uma situação e tomar decisões”. Essa simplificação reduz a complexidade do mundo e, assim, reduz o número de variáveis, facilitando a tomada de decisões.12 

Entre os processos heurísticos, destacamos aqui a heurística de ancoragem-ajustamento. Para Vitorelli e Almeida: 

A heurística de ancoragem-ajustamento reflete a tendência dos indivíduos a tomar decisões que permaneçam próximas aos dados iniciais, já disponíveis. Por exemplo, quando participantes de um experimento recebem um número inicial e são convidados a supor um número subsequente que pareça plausível, eles tendem a permanecer mais próximos do número inicial do que seria adequado. 

A âncora contamina a estimativa, ainda que esteja errada ou seja irrelevante. Esse problema heurístico se relaciona também com o viés de confirmação, que é a tendência de procurar, perceber e interpretar informações de forma a confirmar as próprias preconcepções do sujeito.13 

A partir dessas noções, pode-se reconhecer a pandemia como um dado inicial para os casos futuros em matéria de teoria da imprevisão, aumentando o grau de exigência para o reconhecimento de um fenômeno que desafie a revisão ou a resolução dos contratos. Em suma, por uma questão comportamental, de heurística de ancoragem, a pandemia será o grande referencial para o pós-pandemia. 

De todo modo, há sempre o risco da ocorrência dos chamados vieses cognitivos, que são erros resultantes do desvio dos processos heurísticos. Aliás, a nosso ver, é possível identificar um viés cognitivo de confirmação na proposta de aplicação “póstuma” do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado, por ainda estarmos em um cenário pandêmico, proposta esta que repudiamos veementemente. 

Essa proposta foi inclusive aplicada em decisão monocrática da lavra do Min. Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 828, suspendendo desocupações, despejos e reintegrações de posse. Dos fundamentos da decisão, destaca-se: 

Com relação a essas hipóteses, recomenda-se a intervenção judicial minimalista, pautando-se em balizas já fixadas pelo legislador.  

Identifico, nesse sentido, que o art. 9º da Lei nº 14.010/2020, que regulamentou o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia, suspendeu por quatro meses – até 30 de outubro de 2020 – a concessão de liminares para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei de Locações. São hipóteses em que a legislação permite a concessão de liminar para que o despejo ocorra no prazo de quinze dias, mesmo sem a oitiva da parte contrária. 

Assim, diante da excepcionalidade da crise sanitária da COVID-19, tendo em vista que o próprio legislador erigiu tais parâmetros para evitar o despejo liminar nesse momento e levando em consideração, ainda, que a situação emergencial ainda não cessou, considero razoável estender essa suspensão. É necessário assegurar que as pessoas tenham meios para fazer isolamento social, daí a suspensão dos despejos liminares em prazo exíguo. 

Como adeptos dessa possibilidade de extensão dos efeitos do RJET, destacamos a respeitabilíssima opinião de Alice Cysneiros e Venceslau Tavares Costa Filho, para quem a postergação de certos efeitos da Lei 14.010/2020 “é consequência lógica da própria continuidade da crise sanitária e econômica do país”14

Aqui, parte-se do pressuposto de que o RJET e a própria pandemia são pontos de ancoragem aptos a sobrepor a vigência temporária da lei e aplicá-la à guisa de uma suposta analogia. Ou seja, como o RJET foi um diploma circunstancial, permaneceria aplicável enquanto durarem as circunstâncias que lhe deram vida (a pandemia). 

No entanto, o viés cognitivo de confirmação, o erro de heurística, está na suposição de uniformidade do cenário pandêmico ao longo desses quase dois anos de ameaça sanitária global, que leva, na prática, a uma ultra-atividade da lei contra sua própria razão de ser, a saber: a de estabelecer um regime jurídico temporário para conformar situações e relações jurídicas desmanteladas pelo advento da pandemia. É preciso considerar que, pela própria extensão assumida pelo cenário pandêmico, o RJET trouxe referência legislativa para um período ainda marcado pela insegurança e pela incerteza, dificuldades que foram, por sua vez, sendo relativamente superadas à medida em que passamos a lidar de forma mais consistente com as nuances da crise. É dizer: pela extensão da pandemia, devemos considerar diversos momentos, cada um com suas circunstâncias, cada circunstância imprimindo particularidades nas relações humanas. 

Por isso, consideramos que a aplicação do RJET, mesmo após sua revogação, é um exemplo de viés cognitivo de confirmação dentro de uma heurística de ancoragem. 

De todo modo, mesmo que a questão não trouxesse consigo um problema de viés cognitivo, seria possível chegar ao mesmo repúdio à postergação de efeitos do RJET por meio da própria dogmática da analogia, na medida em que este tipo de técnica de integração pressupõe a existência de uma lacuna de lege lata15, o que não conseguimos reconhecer, e de uma referência legislativa de base que empreste seus efeitos a situações análogas, o que também não conseguimos identificar. 

De volta à heurística de ancoragem, a experiência do juiz com a pandemia certamente servirá como dado de referência, podendo inclusive descambar para um viés cognitivo de confirmação, dificultando ainda mais o reconhecimento prático de situações que admitam a intervenção do Estado-juiz nas relações contratuais sob qualquer fundamento que autorize a revisão. 

Não se olvide, ademais, que a heurística de ancoragem possa nortear o comportamento de partes e advogados, revertendo um quadro ainda frequente de banalização da litigiosidade em torno do intervencionismo contratual, mesmo com acolhimento prático bastante diminuto de teses baseadas, por exemplo, na alteração de circunstâncias ou na excessiva onerosidade/teoria da imprevisão. Isto se agrava com os limites impostos à litigância pelo Código de Processo Civil, entre os quais se destacam as novas regras de deferimento de benefícios da justiça gratuita. Definitivamente, litigar sob a égide do novo CPC exige bem mais responsabilidade e comedimento do que antes. 

Assim, sob a perspectiva de todos os possíveis atores processuais, a heurística de ancoragem, tendo a pandemia como dado de referência, deverá reduzir significativamente as pretensões de revisão contratual e os deferimentos de eventuais pretensões levadas ao Judiciário. 

Dito isto, e dando sequência aos argumentos de reforço da hipótese por nós aventada, chegamos ao sistema de precedentes. 

Impacto do sistema de precedentes

Basicamente, com o advento do Novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, a primazia da lei cedeu um pouco do seu espaço para a reafirmação da importância da jurisprudência para o amadurecimento da cultura jurídica do país e para a obtenção de um nível superior de uniformidade nos provimentos jurisdicionais. 

Para Nilsiton Rodrigues de Andrade Aragão e Francisco Luciano Lima Rodrigues:  

A adoção de um sistema de precedentes impacta de forma profunda o processo decisório. Nessa linha, a atividade jurisdicional está experimentando uma transformação no modo de decidir, no qual os precedentes assumem uma função de destaque na argumentação jurídica das decisões judiciais. Entre os pontos centrais dessa mudança, destacam-se: a definição dos aspectos do precedente que vinculam o juiz na apreciação dos casos futuros e a forma de fundamentar a decisão de um litígio com base no precedente sem ignorar suas especificidades. Em síntese, é preciso definir a forma de aplicar os precedentes judiciais sem que eles importem na desconsideração das características do litígio em questão.16 

Destacam-se pelo menos dois elementos do CPC que instauram essa nova perspectiva. Primeiramente, como decorrência do imperativo de fundamentação das decisões judiciais, insculpido no art. 489, II, do referido diploma, o §1º, VI, do mesmo dispositivo consigna que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. 

Inclusive, destaque-se o registro feito pelos autores acima, no sentido de que a adoção do sistema de precedentes não justifique a desconsideração das características de cada demanda. Trata-se de preocupação procedente e relevante, pois a revisão contratual amparada na teoria da imprevisão (ou qualquer outra que a justifique, tal como a teoria da base do negócio jurídico) exige reflexão em torno do contrato em si e do meio em que é celebrado e executado, conforme já destacamos no âmbito da obra de Clóvis V. do Couto e Silva. E é justamente nessa análise do meio que os precedentes fáticos e judiciais da pandemia certamente se farão presentes na análise de casos no pós-pandemia.   

Em segundo lugar, os artigos 926 e 927 do CPC atribuem aos tribunais o dever de uniformização da sua jurisprudência e de mantê-la estável, íntegra e coerente, e a obrigação de juízes e tribunais observarem decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, enunciados de súmula vinculante, acórdãos em incidentes de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, enunciados das súmulas do STF e do STJ e orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. 

Tudo com vistas à uniformização da jurisprudência, que, em última análise, se presta à obtenção de um ideal de justiça, igualdade e segurança jurídica na prestação jurisdicional. 

Com base nesses imperativos, é razoável pensar que os precedentes de aplicação da teoria da imprevisão surgidos durante a pandemia servirão como referência para situações ocorridas e submetidas a julgamento no pós-pandemia. 

Por exemplo, tomando por base a aplicação do art. 478 do Código Civil17, é bastante factível supor que o juiz, diante da indeterminação da expressão “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”, terá a pandemia de coronavírus como referência, não apenas por ser a mais recente experiência extraordinária e imprevisível (heurística de ancoragem), mas também por estar presente a experiência pessoal de quem vivenciou, em maior ou menor medida, as agruras da crise (viés de confirmação), além da submissão aos precedentes formados durante esse período (impacto do sistema de precedentes). 

Aliás, nessa perspectiva, o sistema de precedentes deve assumir um importante papel de minimização do impacto de vieses cognitivos na tomada de decisão judicial, funcionando, assim, como instrumento de correção de eventuais desvios no processo heurístico, como o próprio viés de confirmação.18 

Esse risco se eleva quando temos em consideração o perfil atual da jurisprudência brasileira sobre a matéria, com perfil consideravelmente subjetivista e com pouca uniformidade. Como destaca Anderson Schreiber: 

(…) o modo empregado pela jurisprudência brasileira para definir um determinado acontecimento como “previsível” ou “imprevisível” e como “ordinário” ou “extraordinário” revela-se excessivamente subjetivo e oscilante, não resistindo a uma análise científica e desafiando, por isso mesmo, qualquer tentativa de uniformização fundada em critérios racionais. Trata-se, em suma, de puro arbítrio judicial, oculto o mais das vezes sob afirmações fluidas ou genéricas. Esse modo de proceder não apenas impede a uniformidade e coerência das decisões, mas também produz um segundo efeito negativo, extremamente relevante. É que, ao centrar foco sobre o juízo de imprevisibilidade e extraordinariedade do acontecimento que antecede o desequilíbrio, o Poder Judiciário deixa de analisar aquilo que deveria ser o núcleo das decisões nessa matéria: o impacto concreto do referido acontecimento sobre a proporcionalidade interna do contrato.19 

Assim, o perfil da jurisprudência já deixa grande margem para que a heurística de ancoragem descambe para um viés cognitivo de confirmação, sobrelevando a importância dos precedentes como instrumento de minimização dessas possíveis intercorrências, inclusive em prol da reversão do referido quadro de desvio subjetivo das decisões. 

Some-se a isso o fato de que o art. 478, por si só, já traz consigo uma dupla filtragem, na medida em que concilia a excessiva onerosidade com a ocorrência de acontecimentos imprevisíveis, naquilo que Rodrigues Junior considera uma combinação da teoria italiana da onerosidade excessiva e da teoria francesa da imprevisão, na mesma linha de raciocínio de autores como José de Oliveira Ascensão, Paulo Roque Khouri e Silvio de Salvo Venosa20

Tudo isto resulta em um prognóstico de uma aplicabilidade praticamente nula do referido art. 478 no cenário pós-pandêmico.

Considerações finais: Requiem para a teoria da imprevisão?

Desde as suas primeiras linhas, a proposta deste breve estudo sempre foi prática. E, na prática, por meio da análise de um considerável número de decisões judiciais proferidas no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ao longo dos anos de 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, verificou-se::  

i) que a recorrência prática da teoria da imprevisão no período anterior à pandemia de coronavírus é ínfima; e  

ii) que a pandemia desencadeou um aumento significativo da recorrência prática da teoria da imprevisão. 

A hipótese de que a pandemia se torne o novo referencial para aplicação da teoria da imprevisão no pós-pandemia é reforçada tanto pelo aspecto comportamental quanto pela cultura jurisprudencial forjada durante ela, com seus efeitos prospectivos decorrentes da imposição do sistema de precedentes sobre as decisões vindouras. 

Crê-se, assim, no surgimento de uma espécie de “efeito ressaca” decorrente da experiência humana com a pandemia e da formação de precedentes que a tenham como condicionante inicial autorizadora da incidência da teoria da imprevisão nas relações contratuais, reduzindo a possibilidade de intervenção nos contratos a praticamente zero. 

Dessa perspectiva, é possível inclusive traçar um perfil da cultura jurídica brasileira em matéria contratual. Pela via indutiva da pesquisa empírica e quantitativa aqui realizada e confirmada a hipótese aventada, teremos a positiva notícia de que, no Brasil, os contratos manterão força obrigatória quase irretocável, apesar dos episódios de banalização de supostas hipóteses de intervenção e dirigismo. 

De todo modo, é óbvio que todos os institutos jurídicos, teorias e conceitos que servem de contraponto à obrigatoriedade mantêm sua relevância e merecem seguir em contínuo desenvolvimento, afinal, a dinâmica das relações sociais e as condicionantes externas sempre trarão consigo novas frentes de debate e novas reflexões em torno da função dos contratos. Pode-se, enfim, perceber um movimento histórico pendular em que ora a obrigatoriedade, ora o intervencionismo, recebe maior ou menor ênfase na ciência jurídica e, principalmente, na prática e na realidade das relações humanas. 

Autor: Adisson Leal

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